Haverá sempre algo a acrescentar ao percurso literário de João de Melo, autor que se celebrizou com romances conceituados como “Gente Feliz com Lágrimas”, e outros que lhe trouxeram reconhecimento a partir dos anos 80. Publicado originalmente em 1984, “Autópsia de um Mar de Ruínas” (D. Quixote, 2017 – 9ª edição reescrita pelo autor) surge na sua extensa nota bibliográfica quase como uma memória intima.
Neste romance somos transportados para um hostil terreno de guerra no contexto do conflito do Ultramar, remetidos para uma África que parou no tempo e onde a fome recorrente é presenciada por militares portugueses que se encontram a um pequeno passo de um motim contra os seus superiores hierárquicos, que tinham a ideia de deserção a habitar no seu íntimo.
João de Melo pauta a narrativa do romance perante o olhar de um enfermeiro esmerado, um furriel diligente ou nativos que não conseguiam ser indiferentes a uma guerra colocada à porta das suas roças, homens que cresceram sem terem sido crianças, exibidos como troféus de guerra num combate ao qual nunca reconheceram justiça, confrontando-se com seres aos quais se equiparavam e dos quais ouviam ser pronunciadas palavras na mesma língua.
Uma África para onde eram enviados jovens soldados, a quem a missão de proteger a pátria era confundida com uma vontade de morrer ou matar, com uma angústia tão grande por saberem qual o sabor da morte. Morte que está constantemente presente no livro, bem como a angústia e o abismo que a própria traz. Melo não coloca de parte descrições precisas da forma como o terror da guerra assola os soldados, ou confrontando a bifurcação de sensibilidades entre os que estavam na linha de combate ou aqueles que tinham a felicidade de não sair do quartel.
O autor não se inibe em descrever com violência o drama da fome, das famílias que nada tinham que comer, enviando os mais novos a sessões de súplica por restos de repastos nas imediações dos quartéis apelando à sensibilidade dos mancebos.
Em largos capítulos do livro, acompanhamos a odisseia de um furriel de guerra mais consciente e solidário com os negros, que se opunha a abusos de poder. Militares que relatam entre si os abusos do regime em território português e que, de “férias” em Lisboa, vislumbravam o fervilhar de correntes dissidentes: “Estamos todos à espera que aconteça uma Grande Coisa no país”, murmuravam entre si, ou quando, nos intervalos de emboscadas, debitam desabafos como “Se eu soubesse que tinha sido para isto, bem que me tinha pirado para França como muitos rapazes da minha aldeia”.
“Autópsia de um Mar de Ruínas” lança uma reflexão pertinente sobre um período incontornável da nossa história contemporânea, onde o autor se preocupa em realçar o lado humano de homens que foram concebidos para serem máquinas de guerra.
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