É durante o período romântico do século XIX que emerge o conceito de música absoluta. Pela primeira vez, é atribuído valor estético à produção musical, algo que torna a música uma arte independente, capaz de gerar a pura e verdadeira natureza do romantismo. Em “Contos Musicais” (Antígona, 2017) estão reunidos três representantes da literatura romântica que, como a História comprova, andaram sempre de mão dada com o mundo musical. Em cinco contos distintos, os escritores Wilhelm Heinrich Wackenroder, Bernd Heinrich Wilhelm von Kleist, e E. T. A. Hoffmann, reflectem sobre o eterno enigma do espírito desta arte melódica.
Os textos estão cronologicamente organizados, sendo Wackenroder a conduzir-nos nas duas primeiras narrativas. A Estranha Vida Musical do Compositor Joseph Berglinder é uma biografia sobre um compositor imaginário que, desde cedo, sente as suas fantasias artísticas oprimidas pela pobreza de espírito familiar e por um pai que desdenhava todas as artes, considerando-as escravas de desejos e de paixões desregradas. Contudo, após alcançar o sucesso que tanto procurava, o jovem músico não se sente completo quando partilha as suas composições com o público. Questionamo-nos, então, se o artista deve sê-lo apenas para si próprio (…) e/ou para uma ou outra pessoa que o compreenda. Quanto a Um Maravilhoso Conto Oriental de um Santo Nu, revela-nos algo mais místico, onde a comunhão perfeita entre a música e o amor parece salvar um homem, aparentemente amaldiçoado na caverna rochosa e isolada onde habita. É o génio do amor e da música que termina o ímpeto sofredor, que fazia com que este santo nunca deixasse de girar a roda do tempo que guardava junto de si. O conceito de génio, conceptualizado durante o período Iluminista do século XVIII, surge neste texto como a percepção romântica de herói e, ao mesmo tempo, de algo que predispõe uma elevação espiritual maior.
Ao longo dos contos são recorrentes diferentes referências musicais. No caso de Santa Cecília ou a força da música (uma lenda), Kleist reforça o lado associado à música litúrgica. Esta escolha parece-nos natural quando nos vemos envolvidos num período de confronto entre católicos e protestantes. Neste âmbito, a música apresenta um papel divino, pois é uma antiquíssima missa italiana de mestre desconhecido que impede quatro irmãos protestantes de travarem a celebração do Corpo de Deus em Aachen. Depois deste episódio nas suas vidas, o Gloria in excelsis acompanha-os em cada dia. Vinga o poder da arte – da música – face ao pecado. Um texto que parece homenagear a própria Santa Cecília, padroeira dos músicos e da música sacra.
Hoffmann surge com Cavaleiro Gluck, uma recordação do ano de 1809. Neste conto, a personagem principal e um enigmático músico exploram as grandes óperas francesas e italianas do compositor alemão, Christoph Gluck. A obra Armide leva estes dois homens a descobrirem-se mais através de reflexões musicais, que passam por referências subentendidas sobre o ambiente musical de Berlim no início do século XIX. O livro encerra com O Barão de B., que nos traz um homem respeitado no mundo musical que possuia provavelmente a colecção mais completa de composições de todo o tipo. Com muita ironia, é retratada a presunção hiperbólica daqueles que pensam ditar as leis da música e dos instrumentos. É possível observar como se cultiva a ideia do violino como o instrumento mais difícil e misterioso de todos. Será que nem todos são senhores desse maravilhoso mistério?
“Contos Musicais” é um livro que preenche vazios e nos faz recordar do caminho conjunto que sempre houve e há-de haver entre a música e a literatura. A fechar esta reflexão, encontramos o posfácio de Mário Vieira de Carvalho, musicólogo que tanto contribui para os estudos de estética e sociologia musical em Portugal. De novo, uma boa aposta cultural da Antígona.
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