Chegou ao grande ecrã pela mão do trio Lana Wachowski, Tom Tykwer e Andy Wachowski mas, apesar de todo o aparato visual, esteve longe de corresponder à vertiginosa teia montada no papel por David Mitchell. Fala-se aqui de “Atlas das Nuvens” (Editorial Presença, 2012) – “Cloud Atlas” no original -, um livro genial e empolgante onde a ficção e a fantasia se unem para traçar um retrato do poder e de como o homem, na ânsia de o obter e demonstrar, tem tratado de conduzir o mundo na direcção de um buraco sem fundo.
Em quase 600 páginas, David Mitchell leva-nos numa incrível viagem que começa em 1850, no oceano Pacífico, até um futuro pós-apocalíptico, onde os clones se passeiam entre os puros-sangue num estado de (im)perfeita unanimidade. Mitchell dinamitou por completo o dique da ficção literária, não apenas pela viagem temporal e distópica que oferece como, também, pela voracidade com que cruza sucessivamente géneros literários que, para além da ficção como a conhecemos, reserva espaços de entrevista ou excertos de um diário.
As personagens criadas por Mitchell são, todas elas, fascinantes: Adam Ewing, um viajante forçado a atravessar o oceano Pacífico, notário de profissão, que com uma grave doença se verá imerso num mundo de colonizadores, observando “aquela brutalidade despreocupada com que as raças mais claras tratam as mais escuras“, num espaço geográfico onde, apesar da proximidade gramatical, maoris e morioris são tudo menos iguais; Robert Frobisher, um jovem compositor deserdado e sem lugar para cair morto, que parte em busca do compositor inglês Vyvyan Ayrs, “o único britânico da sua geração a rejeitar pompa, circunstância, bucolismo e charme. E que não compõe uma obra desde o princípio dos anos 20 (estamos em 1931) por estar meio cego e mal conseguir segurar um lápis”, na tentativa de se tornar o seu protegido; Luisa Rey, colunista de uma revista de fofocas intitulada Spyglass, que terá a hipótese de seguir as pisadas e coordenadas genéticas do seu pai jornalista investigando a abertura de um reactor nuclear que poderá não ser seguro, e que teve luz verde na convicção de que “em todas as consciências existe, escondido algures, um interruptor para ligar e desligar“; Dermot Hoggins, um editor menor caído em desgraça, que ao publicar o seu primeiro bestseller se vê condenado a fugir a uma máfia pouco organizada mas muito vingativa; Sonmi ~451, uma criada de restaurante geneticamente modificada, que afirma que “os sonhos são realmente a única coisa que jamais” possuiu e que vive uma vida de escravatura laboral em tempos de unanimidade, onde todo o trabalho menor é feito por clones, os documentos históricos não existem, as pessoas não envelhecem movidas a drogas de juventude e os velhos desaparecem do mapa à boleia da eutanasium; ou Zachry, um jovem ilhéu do Pacífico, que vive num lugar apodrecido onde se acredita que as almas renascem depois de a fome ter trazido a barbárie de volta ao mundo, de os mares terem fervido e de os solos terem sido envenenados.
Para lá do fatalismo e de algum pós-fatalismo, “Atlas das Nuvens” oferece também momentos de humor e pura ironia, profundos ou subtis, como quando, no manuscrito intitulado “A Terrível Provação de Timothy Cavendish”, lemos isto: “A minha mãe costumava dizer que um livro é sempre um escape à mão. Bom, mãe, olhe que não, no fundo. As suas adoradas sagas, em letra de imprensa grande, sobre ricos e pobres e desgostos de amor, não serviram de camuflagem contra os sofrimentos treinados em si pelo lançador de bolas de ténis da vida, pois não? Mas é verdade mãe, que num ponto tem razão. Os livros não oferecem verdadeira protecção, mas podem impedir o espírito de se coçar até ficar em sangue.”
“Atlas das Nuvens” é um dos livros mais singulares e ambiciosos escritos nos últimos anos, um livro onde, apesar de toda a negritude, David Mitchell não deixa de incutir uma certa esperança quebradiça perante um mundo privado de justiça e entregue às imbecilidades dos mais poderosos: “«Aquele que quiser lutar contra a hidra de muitas cabeças que é a natureza humana, tem de pagar caro e a família tem de pagar também! E só com o teu último suspiro é que hás-de perceber que a tua vida não é mais que uma gota num oceano sem limites!» E, contudo, o que é o oceano senão uma profusão de gotas?” Puro deleite.
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David Mitchell irá estar presente na edição de 2017 do Lev – Literatura em Viagem, que se realiza entre os dias 12 e 14 de Maio em Matosinhos.
2 Commentários
Gostaria de saber se têm disponíveis os seguintes livros:
O atlas das nuvens
&
Travessia para Avalon.
Muito grata.
Ana Oliveira
Bom dia, Ana. Terá de procurar nas livrarias, por aqui apenas nos dedicamos a recensões. Cumprimentos, obrigado por nos seguir.