Cormac McCarthy é um daqueles escritores que, se tivesse dedilhado a certa altura umas cordas enquanto nos cantava a sua prosa, provavelmente já teria levado Nobel e meio da Literatura para casa. Fazendo de cada livro um universo muito próprio, Cormac escreveu há uns bons anos uma pérola intitulada “A Estrada”, que seguia a relação entre um pai e um filho num mundo pós-apocalíptico onde, mesmo numa terra desolada, o amor permanecia como a última esperança e resquício de uma humanidade perdida.
Em 2013 surgiu nas livrarias espanholas “Intempérie” (Marcador, 2014), de Jesús Carrasco, uma espécie de “A Estrada” à espanhola onde um rapaz, fugindo de casa e de um implacável aguazil, descobria a esperança ao lado de um velho pastor.
Estamos num lugar remoto onde um automóvel se encontra na lista dos objectos mágicos, cercado por uma planície infinita e árida e onde a água vale mais do que o tesouro escondido pelos 40 ladrões tramados pelo Ali Babá. Um mundo onde a família é uma “flor negra” desprovida de sentimentos, e onde o jovem narrador “não sabia nada de lealdades nem do tempo que passa entre os seres e os une com pontos cada vez mais apertados“. Um mundo onde o mapa mental do protagonista “termina nos confins da franja de olival situada a norte da aldeia“.
A partir do momento em que se aventura a deixar o seu buraco de argila, depois de as vozes se calarem e de o dia estar perto de se levantar, a criança parte rumo ao desconhecido, apenas para se dar conta de que preparou muito mal a sua fuga – mas de que outra forma poderia ser? – e que a morte, seja por causas naturais ou pela chegada do aguazil, chegará numa questão de horas. Até que um velho pastor aparece, mostrando-lhe o caminho para a dignidade humana e um triângulo emocional feito de memória, entendimento e vontade. O triângulo que, afinal, marca a entrada na idade adulta. Um romance trabalhado palavra a palavra, num livro onde os sentimentos humanos encontram eco e se revelam num fim do mundo.
—
Jesús Carrasco irá estar presente na edição de 2017 do Lev – Literatura em Viagem, que se realiza entre os dias 12 e 14 de Maio em Matosinhos.
Sem Comentários