“A sério: como é que é suposto alguém guardar memória de todos os cadáveres daqui? Parece o Midsomer Murders, só que com acidentes e suicídios e afogamentos históricos, grotescos e misóginos, em vez de pessoas a caírem na lama ou a baterem nas cabeças umas das outras.”
No ano de 1989, os Public Enemy avisavam a plenos pulmões para se desconfiar do “hype”, que estaria longe de ser uma garantia de verdade ou qualidade. Após a edição de “A Rapariga no Comboio“, Paula Hawkins tornou-se na next big thing do thriller com laivos de policial, e eram muitos os que esperavam por “Escrito na Água” (Topseller, 2017) já de unhas roídas – o livro chega às livrarias a 2 de Maio numa edição quase planetária.
Estamos em Beckford, vila que viu já muitas mulheres serem levadas pela água, “de um negro-esverdeado e cheia de coisas vivas e de coisas moribundas“. Nel vivia obcecada pelo Poço das Afogadas, nome dado ao lugar onde “as pessoas desesperadas vão acabar com tudo“, e preparava a edição de um livro onde iria contar a história de muitas delas. Quando o seu próprio corpo é descoberto nessas mesmas águas, várias teorias se colocam, desde um suicídio motivado pela culpa a um assassinato para que a verdade sobre acontecimentos anteriores não viesse à tona. Caberá ao inspector Sean Townsend e à agente Erin Morgan apurar a verdade, tendo para isso de levar os habitantes de Beckford a revisitar antigos segredos, rumores, ódios de morte e desejos de vingança.
Para além do plano de investigação, “Escrito na Água” explora a relação afectiva entre Jules, a irmã de Nel, e Lena, a filha de Nel – que se olham como verdadeiras estranhas -, ou oferece-nos a personagem de Nickie, que se diz médium e descendente de bruxas, alguém que mantém viva a lenda do Poço das Afogadas: “Ninguém gostava de se lembrar de que a água daquele rio estava infectada com o sangue e a bílis de mulheres perseguidas, mulheres infelizes; afinal, bebiam-na todos os dias“.
Apesar de manter o desenlace em lume brando até à última página numa mecânica eficiente, falta a “Escrito na Água” uma trama um pouco mais ardilosa e, sobretudo, personagens cativantes – algo dificultado pela multiplicidade de narradores/vozes que Hawkins decidiu criar. Se estiverem à procura de um enredo no estilo de “Os Homens que Odeiam as Mulheres”, este não é o caminho. Se, por outro lado, estiverem numa de Midsomer Murders, enquanto desfrutam de uma caneca de chá fumegante acompanhada por uns bolinhos secos, “Escrito na Água” será uma boa companhia.
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Paula Hawkins é uma das presenças asseguradas da edição deste ano da Feira do Livro de Lisboa, que decorre entre os dias 1 e 18 de Junho.
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