Estados Unidos, Boston e arredores, Cuba, anos de 1926 a 1935. Joseph ou Joe Coughlin é o protagonista de uma narrativa fluida, que equilibra acção, mistério e informação histórica. Gangster ou fora da lei? Do princípio ao fim, a afirmação da diferença é mantida. Joe Coughlin afirma-se como alguém que não cumpre a lei, que se dedica a negócios e esquemas para ganhar dinheiro, procurando fazê-lo segundo os seus princípios e limites, resistindo à entrega e vassalagem total a grupos organizados.
Filho de um respeitado responsável pelo departamento da polícia de Boston, que desde cedo o alertara para que “o que pomos neste mundo há de sempre regressar a nós“, Joe procura conduzir as suas acções por um código ético próprio que, mais cedo ou mais tarde, o forçará ao confronto com a realidade. Com Emma Gould e Graciela protagoniza intensos romances, com desfechos distintos.
“A verdade de si próprio era a de um rapazinho assustado, perdido dos pais como um par de óculos de leitura numa tarde de domingo, tratado com gentilezas esporádicas por irmãos mais velhos que chegavam sem avisar e partiam sem se despedir. A verdade de si próprio era a de um rapazinho solitário numa casa vazia, à espera de que alguém lhe batesse à porta e perguntasse se estava bem.
A história de si próprio, por outro lado, era a de um príncipe gangster. Um homem que tinha um motorista a tempo inteiro e um guarda-costas. Um homem de riqueza e estatuto. Um homem a quem os outros abandonavam os lugares porque ele os cobiçava.”
“Viver na Noite”, de Dennis Lehane (Sextante Editora, 2017 – reedição), conduz-nos por uma viagem aos tumultuosos anos 20 e 30 do século passado. O relato encontra-se dividido em três partes: Boston 1926-1929, Ybor 1929-1933 e Todos os filhos violentos 1933-1935, cada uma correspondendo a fases distintas de descoberta, afirmação e confrontação.
No cômputo, os ingredientes para uma leitura compulsiva estão reunidos. Para além da acção e do romance presente em todo o enredo, há o relato detalhado de como se consegue a sobrevivência em dois anos de passagem por uma prisão americana, a Penitenciária de Charlestown, cenas reveladoras de racismo, de poder e hierarquia nas disputas entre máfias por altura da Lei Seca.
Na história dos Estados Unidos, a Lei Seca caracterizou o período de 1920 a 1933, durante o qual a fabricação, o transporte e a venda de bebidas alcoólicas para consumo foram proibidas, visando-se salvar o país de problemas relacionados com a pobreza e a violência. Ao grande apoio inicial seguiu-se o comércio e o consumo ilegal em grande parte com a conivência do próprio governo. Traficantes e comerciantes ilegais montaram esquemas que lucravam com o consumo ilegal. O efeito causado pela lei foi totalmente contrário ao esperado. Ao invés de acabar com o consumo de álcool e com os problemas sociais, entre outros, gerou a desmoralização das autoridades, o aumento da corrupção e da criminalidade, bem como o enriquecimento das máfias que dominavam o contrabando de bebidas alcoólicas.
O ponto de encontro das pessoas que queriam beber eram bares clandestinos localizados em subterrâneos, com o objectivo de não chamar a atenção. Foi nessa época que tiveram sucesso os típicos bares no estilo Speakeasy, bem retratados por Dennis Lehane. A legalização das bebidas alcoólicas chegaria com o argumento de criação de mais empregos, aumento da economia e de impostos.
Como verdadeira narrativa épica que é, em “Viver na Noite” encontramos registos propícios à informação e reflexão ainda sobre questões raciais, através da presença do movimento Ku Klux Klan ou simplesmente KKK, que defendia a supremacia branca, a anti-imigração e o anti-semitismo, historicamente expressos através do terrorismo dirigido a grupos ou indivíduos aos quais se opunham.
No final retiramo-nos da leitura com alguns dilemas. É possível preservar a identidade e alguma moralidade mesmo em ambientes perversos? Estaremos preparados para as consequências? Qual o valor da aliança? Será legítimo falar em ética mesmo em organizações criminosas? Até onde vai a vontade de sobrevivência por contraponto com a integridade?
Dennis Lehane (1966) é um escritor dos Estados Unidos, autor de romances policiais, várias vezes premiado e traduzido em 22 línguas. Escreve livros com enredos investigativos e atmosfera intensa. Alguns dos seus mais conhecidos livros têm sido com grande sucesso adaptados ao cinema.
“Viver na Noite” foi recentemente adaptado ao grande ecrã por Ben Affleck. Sabendo-os contemporâneos, livro e filme, é difícil resistir a ambos, sendo mesmo desaconselhável que tal se faça. Completam-se mas não se dispensam. Cada um é mais do que outro.
1 Commentário
Concordo com sua crítica. Eu acho que o livro e o filme são muito bons. A Lei da Noite se tornou em uma das minhas histórias preferidas desde que li o livro, e quando soube que seria adaptado a um filme, fiquei na dúvida se eu a desfrutaria tanto como na versão impressa, mas adorei. No filme Ben Affleck foi o diretor responsável e fiquei muito satisfeito com o seu trabalho, além de que o elenco foi de primeira. De verdade, adorei que tenham feito este filme. A história é muito interessante, realmente a recomendo.