A primeira frase do mais recente livro do ficcionista, poeta, ensaísta e argumentista francês Michel Houellebecq, “Lanzarote” (Alfaguara, 2017) – “Dia 14 de Dezembro de 1999, em plena tarde, tomei consciência de que a minha noite de passagem de ano seria, provavelmente, um falhanço total – como sempre” -, define o começo de tudo, numa antecipação de momentos introspectivos.
No último parágrafo do mesmo, no final de 102 páginas que apelam aos sentidos, a narrativa termina reafirmando o valor da ação e da procura de sentido, sem as barreiras: “A bruma não basta, não nos nossos dias; não é suficientemente material – poderíamos compará-la à poesia. As nuvens talvez pudessem bastar, se vivêssemos no meio delas. A bruma não basta; mas nada neste mundo é mais belo do que a bruma erguendo-se do mar.”
Não desvirtuando a identidade que tem granjeado de provocador e controverso, em “Lanzarote” Michel Houellebecq começa por convidar o leitor a realmente ponderar se quer continuar cúmplice de um relato que se adivinha transparente e desprovido de subtilezas, se quer ou estará em condições de o acompanhar. O mote é a viragem do século e a escolha de um destino de férias que pretende ser compensador de uma falhada passagem de ano e de milénio.
Lanzarote nunca fora uma opção elegível, não fora a atracção evidente do protagonista, que muitos consideram ser o alter-ego do próprio autor, pelo impulso e pela adesão aos imponderáveis da vida, à volúpia do momento e dos humores.
A viagem concretiza-se logo no início do ano de 2000. A narrativa começa por ser oscilante, entre descrições paisagistas, informação histórica e pensamentos íntimos. Para quem pela primeira vez toma contacto com o estilo de Houellebecq, ainda que já de sobreaviso pela fama de “l’enfant terrible” da literatura francesa contemporânea, não deixará de se surpreender pelo impacto das cenas de sexo explicito surgidas no texto como um encontro inusitado ao virar da esquina. Pam e Bárbara, duas jovens alemãs, completam o cenário de Lanzarote, partilhando com o protagonista o valor do momento. Rudi, o solitário e melancólico polícia, acentua a componente autorreflexiva e a procura de um sentido para a existência, a religião e as seitas religiosas – e, novamente, o sexo, limiar de libertação ou de perversão.
“Podemos viver sem esperar nada da vida?” Parece ser esta a questão central em “Lanzarote”, mesmo quando o cenário evolui e passa por breves registos de uma viagem à Birmânia, uma série de conferências nos Estados Unidos da América, a rotina anual de ida a um bar swing ou uma reflexão sobre o valor da literatura no século XX.
Aparente hedonista, Houellebecq deixa uma mensagem de legitimação do prazer como forma de alcance da felicidade, inclusive e principalmente o prazer imediato, sem adiamentos, experimentado sem qualquer restrição moral ou de costumes.
“Lanzarote” são viagens, experiências, situações. São pedaços da vida contemporânea e do vazio ou da forma de o enfrentar, tarefa já iniciada por Michel Houellebecq em publicações anteriores a que poucos ficaram indiferentes, nomeadamente, “Submissão” (2015), uma fábula política e moral, e “O mapa do território” (2011), com o qual ganhou Goncourt, o principal prémio literário francês, num debate de fundo sobre os limites entre a ficção e a realidade, a obra e o plágio.
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