Quando falamos de publicações norte-americanas, mais especificamente da Marvel e da Image Comics, a G. Floy continua a assumir-se como uma das editoras mais relevantes no panorama nacional. Talvez por estar tão intrinsecamente associada a estes géneros de BD, a maior surpresa de 2016, em termos editoriais, tenha sido o surgimento deste “O Astrágalo” (G. Floy, 2016). Esta adaptação do livro de Albertine Sarrazin marca uma nova viragem na editora, não só pela escolha da edição em si – uma de valor – mas, também, porque abre todo um novo leque de possibilidades editoriais – e porque assistir a um crescimento e expansão editoriais deste género em Portugal é sempre de louvar.
Albertine Sarrazin surpreendeu e chocou o mundo em 1965 quando publicou o seu “Astrágalo”, onde se narra a história de Anne, uma mulher livre numa França pós-guerra ainda muito enclausurada sobre si própria e sobre os seus valores. É um período de grande tensão que conduziria à famosa rebelião de Maio de 68. Este “Astrágalo” é o primeiro volume sobre esta personagem, a qual bebe directamente das viviências da própria autora, cuja infância problemática cedo lhe causou alergia à figura da autoridade – os restantes dois livros são, por ordem, “La Cavale” e “La Traversière”.
Infelizmente, logo após a publicação do terceiro volume, a jovem autora morreu durante uma operação, ainda com apenas 30 anos. Apesar de muito jovem, Sarrazin deixou a sua influência bem vincada no mundo, imortalizando-se como uma das grandes escritoras inconformistas da sua geração, famosa por uma prosa na qual se misturavam com grande elegância a poesia da língua francesa e o calão das ruas de Paris.
Existe sempre alguma tensão quando adaptamos grandes obras a outros formatos. O reconhecimento que têm no mundo exerce sempre um peso maior aos autores que decidiram aceitar o desafio. Anne-Caroline Pandolfo e Terkel Risbjerg já estão habituados a trabalhar nesta linha e, com este “Astrágalo”, conseguem não só trazer-nos uma obra de BD sedutora por si só como, igualmente, capaz de nos levar a querer conhecer mais do mundo de Sarrazin – no fundo, conseguindo o melhor de dois mundos.
A vida madrasta de Anne cedo a levou por um caminho de aprisionamento, quando foi detida após um assalto. Mas esta é uma condição de vida para a qual não foi talhada e, por isso, iniciamos esta aventura com a sua fuga, uma que acaba por, ironicamente, a deixar de novo dependente de terceiros, ao partir o osso que dá nome a esta história. Esta fractura torna-se crucial para toda a trama, uma vez que é graças a ela que surge Julien – qual cavaleiro saído no meio da noite escura – em auxílio da nossa protagonista. Este herói fora-da-lei torna-se numa espécie de Clyde para esta Bonnie, criando aqui mais um grande romance entre dois espíritos rebeldes que jamais serão domados por alguém.
Trata-se de uma bela história, com personagens tão irreverentes quanto tentadoras, duas características que as tornam imediatamente contagiantes. É de salientar o estilo de desenho escolhido por Risberg e a forma como foi trabalhado para contar esta história. É na forma como o desenho é pensado por estes autores que a adaptação de “Astrágalo” faz sentido e triunfa, uma vez que traz uma nova dimensão à história de Sarrazin – porque o que não faltam aí são adaptações oportunistas que se colocam em cima de grandes obras literárias com o intuito conquistar sucesso fácil. Porém, para triunfar não chega que a obra original seja boa, é preciso saber transformar uma linguagem em outra; neste caso, as palavras de Sarrazin em desenhos, que devem fazer mais do que simplesmente ilustrar os acontecimentos, palavra por palavra, e ser capazes de capturar toda uma atmosfera sentimental, todo um espírito – neste caso – inconformista.
Sem Comentários