Para aqueles que não perceberam muita da indignação gerada com a atribuição do Nobel da Literatura a Bob Dylan, aconselha-se que passem os olhos por este “Zero K” (Sextante Editora, 2016), saído da imaginação e do corpinho do também norte-americano Don Delillo. Um livro profético, pertinente e extremamente relevante nos dias de hoje.
“Poderá alguém estar ao mesmo tempo vivo e morto?” A pergunta foi feita séculos atrás por Santo Agostinho, mas a sua pertinência é total no caso de “Zero K”. Logo a abrir, o jovem narrador Jeffrey Lockhart viaja até um lugar desértico, onde se avistam homens vestindo camisas de futebol e com o mesmo inchaço na anca. O motivo da visita prende-se com a sua madrasta, Artis, que se voluntariou para fazer parte do visionário projecto do seu pai, Ross Lockhart, denominado A Convergência.
Congelação. Mente e corpo revigorados, ressuscitados, num tempo que está por vir. A ideia não é nova, mas aqui está muito mais perto da sua concretização, onde a tecnologia parece, também ela, estar assente na fé num outro deus. A convergência que representa, também, “uma obra inacabada, um aterro, uma forma de earth art, de land art.”
Porém, se Artis sofre de várias doenças incapacitantes, esperando acordar num tempo em que estas sejam já curáveis, o pai de Ross pretende juntar-se a ela nesse longo sono desperto, onde até existe uma nova língua para aprender, quase matemática. As dúvidas, essas, persistem: “Vais morrer como alguém com um certo nome e com toda a história e memória e mistério reunidos nessa pessoa e nesse nome. Mas acordas com tudo isso intacto? Será apenas uma longa noite de sonho?”
A morte de Artis será quimicamente induzida, “numa câmara frigorífica com temperaturas negativas, cumprindo um protocolo médico extremamente preciso, regido pelo delírio colectivo em grande escala, pela superstição e pela arrogância e pela ilusão deliberada.” Quanto a Ross, por outro lado, pertence à unidade especial denominada Zero K, da qual fazem parte pessoas saudáveis que pretendem “fazer um determinado tipo de transição para o nível seguinte” – posto de outra forma, pretendem parar de viver antes mesmo de a vida ficar de alguma forma ameaçada.
Na sua descida aos confins da terra, Jeffrey irá ouvir o zumbido do mundo, ele que tem a mania do asseio e medo da casa das outras pessoas, servindo esta estranha viagem como um exercício introspectivo de cisão da alma: “Ali estava eu, num compartimento hermético, a inventar nomes, a reparar em sotaques, a improvisar histórias e nacionalidades.”
Para além das personagens que constituem o seu distante universo familiar, Jeffrey irá encontrar um monge que carrega em si um grande cepticismo, recita mantras quase musicais e acaba por atirar frases tão negras como esta: “A morte é um hábito que custa a perder.”
Livro que contém em si centenas de perguntas – são incontáveis os pontos de interrogação -, “Zero K” vai até ao fundo da alma humana para nos falar do passado e do futuro da humanidade, num tempo cada vez mais tecnológico. Um romance que nos faz pensar no legado que deixamos, na nobreza da morte, do nosso próprio e efémero zumbido terrestre. Tudo acompanhado pelas grandes tragédias modernas, como o terrorismo ou as catástrofes naturais. Não há canções, mas mora aqui um dos grandes livros do ano com edição portuguesa.
1 Commentário
De Don DeLillo apenas li submundo e gostei, e pelo que me descreve aqui suspeito que será outro romance com potencialidades para gostar. Anotado.