Em meados do século XVI, um navio espanhol dirige-se para o continente Americano. A intenção é clara: devolver fragmentos de terra do Novo Mundo à coroa Espanhola. Reza a lenda que um dos membros da expedição documentou manualmente a odisseia. Com base nesse registo, a romancista Laila Lalami oferece-nos “Memórias de um Escravo” (Clube do Autor, 2016).
Não sendo apenas um simples livro sobre um escravo, a autora expõe a vida de sofrimento e abstinência de quem hipotecou a sua existência para salvaguardar o bem-estar da sua família, financeiramente limitada após o consumar da debilidade física que se tornara crónica para o seu pai. O apreço e apego à família acabará por ser uma constante ao longo do livro, sobretudo quando o narrador revê nos restantes escravos traços de personalidade semelhantes a familiares seus.
Antes da travessia marítima, os arquitectos da expedição precaveram-se no sul de Espanha, recrutando mão-de-obra gratuita oriunda do Norte de África. Por essa razão, Mustafa (o verdadeiro nome do narrador) teve como destino integrar a expedição que atravessou o Atlântico, passando o próprio a ser propriedade do Señor Dorantes.
Durante o romance, várias vezes são feitas referências a Lisboa e Portugal, sobretudo a descrição da batalha de Azamor, tomada de assalto por Lusitanos em 1513. Esse facto histórico acaba por estar relacionado com a entrega de Mustafa a Dorantes, visto que a cidade marroquina ficou entregue à fome e a uma vida miserável.
Aquando das expedições, o narrador vê-se forçado a suportar abusos de várias ordens perante pessoas com o seu tom de pele. Além do mais e para adensar a trama, a expedição depara-se com inúmeras dificuldades, confrontando-se com perigosas doenças ou Índios que defendem os seus territórios usando a força, o que terá como consequência imediata o registo de imensas baixas. As tentativas de conquistas de terrenos no Novo Mundo acabam em derrames de sangue colectivos, aos quais o narrador acaba sempre por ser miraculosamente poupado. A ganância Ocidental é severamente punida, sendo que um dos sucessos de Lalami é o poder gráfico das descrições das atrocidades a que os exploradores e escravos são submetidos, enquanto o número de membros da expedição vai sendo progressivamente reduzido e muito poucos serão os sobreviventes.
Mais do que um relato em busca de ouro e tesouros perdidos do outro lado do Mundo, “Memórias de um Escravo” é, sobretudo, a história de Mustafa, um negro árabe que se torna um escravo comprado diante de todos, obrigado a sacrificar o futuro para oferecer uma vida melhor à família, perdendo a partir daí toda a esperança que podia ter numa vida digna que justificasse a sua existência. (“Com o decorrer dos anos, convencera-me a mim mesmo de que o meu sacrifício fora o suficiente para lhes poupar a vida que eu agora vivia, e por vezes atrevia-me a pensar que a boa fortuna lhes havia sorrido”). É um regressar ao tempo em que um Homem não é um Ser Humano mas mera mercadoria, usada sem pudor para servir quem o comprou e o poupou à morte. Ao longo do livro, a dicotomia do poder do forte usado contra o mais fraco é uma constante, não poupando a autora a colocar como vilão os latifundiários de pele branca.
Num ponto charneira do romance, Mustafa encontra-se tão despojado de tudo que até o seu nome lhe é retirado, passando a ser tratado por “Estebanico”. É um dos pontos mais importantes da obra pois, a um escravo, até a sua identidade lhe é retirada. (“Um nome é algo precioso; transporta em si uma lingua, uma história, um conjunto de tradições(…)”).
A intensidade da narrativa, o potencial descritivo e a perturbação que se insurge contra nós ao ler esta obra valeram a Laila Lalami uma nomeação para o Pullitzer e o Man Booker Prize em 2015.
Escapando ao estrito campo ficcional, “Memorias de um escravo” é um documento que testemunha o sofrível percurso de um escravo e a miséria humana que imperou na Idade Média. Mas não é apenas um romance histórico por si, trata-se de um documento de condenação à ausência de moral num período que nos está cronologicamente distante.
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