No dia em que entrevistámos Brandon Sanderson, os americanos preparavam-se para escolher o sucessor de Barack Obama, e poucos seriam aqueles que apostariam o dinheiro do porquinho numa vitória do candidato republicano Donald Trump – fosse por este ter apostado numa campanha pouco ética ou, se não por isso, por usar base e não saber espalhá-la, como manda a lei da cosmética e do bom gosto. Era por isso impossível falar com Sanderson e deixar de lado a política, uma vez que Mistborn, a saga que em Portugal foi editada pela Saída de Emergência – com o título Mistborn – Nascida nas Brumas -, usa a fantasia para falar de política, filosofia e religião, colocando alguns predestinados – ou amaldiçoados, se preferirem – a percorrer os céus ou a atravessar estradas como autênticos F1`s, e isto com a ajuda de metais que se engolem. Fica desde já a dica: para os amantes do lado fantástico da literatura, Mistborn é das melhores coisas que poderão encontrar por aí.
No dia de hoje e sendo americano a pergunta tem de ser feita: arranjou tempo para votar nas Presidenciais?
Sim, votei antes de vir para a Europa.
Como está a viver a situação política americana, e como prevê o estado da nação dependendo da entrega dos destinos do país a Hillary ou a Trump?
É um pouco triste porque o candidato de quem eu gostava – Bernie Sanders – não chegou às Finais, foi derrotado nas Primárias. Dessa forma é difícil olhar para as eleições quando a pessoa que se apoia não está sequer nelas. Estou esperançado que as eleições resultem na necessidade de o Partido Republicano se reformar, que seja um momento assustador para eles, mas não penso que haja sequer uma hipótese de Trump ganhar: todas as sondagens dizem que Hillary irá ganhar, portanto julgo que tudo ficará bem.
Pergunto isto porque a Saga Mistborn tem, por detrás de todo o artifício fantasioso, uma forte componente política. De onde partiu a ideia de escrever um livro político usando a fantasia?
É definitivamente um livro político. Todos os livros de fantasia, a níveis diferentes, são sobre o “agora” e não sobre o passado. É algo que as pessoas muitas vezes confundem na fantasia. Usamos um mundo fantástico para explorar assuntos que não poderíamos fazer noutro tipo de livro. Podemos olhar para Tolkien e encontrar questões raciais e até vislumbrar os efeitos da Primeira Grande Guerra, e isto num livro de fantasia. A política, a religião, a ciência e a sua e forma como se relacionam connosco são o que realmente me interessa explorar, colocando para isso questões. O segundo livro Mistborn, por exemplo, é sobre uma alguém que sobe ao poder e que é, na sua essência, um Republicano tradicional: quer que a cidade seja uma República, quer tratar toda a gente de forma justa, mas a realidade da situação em que se encontra arrastam-no para o papel de ditador, uma vez que as circunstâncias são extremas. Temos assim alguém que foi sempre um revolucionário, que desejava uma nação democrática, colocado numa posição de colapso. E isto é algo que não se pode realmente fazer numa não novela de fantasia. Gosto de referir o facto de andar à procura de respostas, não procuro dá-las nos meus livros. Não quero que as pessoas encontrem neles qualquer filosofia que não seja a de verificar que é duro tomar decisões, e que por vezes estas são difíceis, aparentemente incorrectas e muito incertas. Isso é importante para mim: ler um livro e ser catequisado não é o que eu pretendo para o leitor.
Em Mistborn, Ellend assume um pouco a figura de um lírico, que vê no pacifismo, no diálogo e na consulta popular as fundações de um regime democrático. Há ainda espaço para a utopia na sociedade moderna?
Sim, acho que ainda há espaço para isso, sou um optimista. Podemos fazer melhor do que temos feito até agora, em particular melhor na forma como tratamos os outros. Não escreveria ou encorajaria as pessoas a pensar nisto se não achasse que a sociedade podia melhorar. Alguma vez chegaremos a uma utopia perfeita? Não sei. Mas a ficção científica e a fantasia há muito que sonham com esta possibilidade. Star Trek está basicamente perto de uma utopia, e penso que eventualmente poderemos chegar a algo como isso, onde não perseguimos tanto as coisas materiais e onde a sociedade está mais focada naquilo que pode criar e descobrir. É parte da natureza humana querer ser melhor, e somos agora melhores do que nos séculos anteriores. E poderemos ser ainda melhores.
Fala-se muito no facto de George R. R. Martin sacrificar muitas das suas personagens, mas a verdade é que se no fim da saga olharmos para trás são muitos os que ficaram pelo caminho.
Sim, visto assim é um pouco Martinesco.
Estes sacrifícios eram já esperados ou foi algo que nasceu durante a escrita de Mistborn?
Uma das grandes diferenças entre a minha escrita e a de Martin é a de que Martin é um escritor que parte à descoberta (um discover writer), tal como Robert Jordan ou Neil Gaiman. Eu sou um outliner, gosto de ter uma base sólida e de saber para onde vou. Não quer dizer que depois me agarre a 100 por cento a isso, de facto até acabo por me desviar bastante, mas vou actualizando esse caminho enquanto escrevo. Gosto de finais poderosos e explosivos, e para mim isso requere uma base muito sólida no que toca a saber para onde me dirijo. As pessoas perguntam-me por que razão mato as personagens. Eu respondo sempre que não o sinto dessa forma. Se uma personagem morre nos meus livros é porque essa personagem, enquanto pessoa, assumiu correr certos riscos, e se eu proteger sempre as consequências desses riscos estou a criar uma história sem consequências, o que será errado. Proteger as personagens mesmo quando tomam posições erradas ou de risco é algo que não quero fazer nos meus livros. As personagens devem poder tomar decisões heróicas, e isso por vezes implica um sentimento de perda.
Não receou que os leitores ficassem perdidos entre tantas ligas metálicas, muitas delas com capacidade de se fundirem umas com as outras?
E um pouco complicado, não é? Preocupei-me com isso e tentei encontrar alguns truques literários que ajudassem as pessoas a entrar na história. No primeiro livro evitei mostrar como realmente se fazia, até que temos uma cena entre Kelsier e Vin, o mentor e a aprendiz, que começa a descrever o método. Não temos de conhecer toda a mecânica do processo até conhecermos as personagens, e isto ajuda a que todas essas questões relacionadas com os metais não se tornem tão complicadas, pouco credíveis ou essenciais para a história. Se tentar explicar como a magia funciona isso soará um pouco estranho, mas as respostas dos leitores têm sido muito positivas apesar de se tratar de um mundo diferente.
Sim, o mundo criado em Mistborn é muito diferente do que já temos visto na Literatura Fantástica.
É isso que tento fazer com a minha escrita. A fantasia é o género da exploração e da descoberta, e se vamos sempre para os mesmos lugares essa essência acaba por se perder. Quero que nos meus livros os leitores visitem lugares onde nunca antes estiveram, que seja uma nova experiência.
Há também uma forte carga religiosa no livro, sobretudo através da personagem de Sazed, que vai estudando todas as religiões do mundo tentando encontrar uma que traga esperança aos homens.
O que Sazed determina no livro não é necessariamente a minha filosofia. É a dele, apesar de partes da minha filosofia acabarem por fazer parte de cada uma das personagens. Sou uma pessoa religiosa, mas parte dessa busca é feita do ponto de vista de um ateu. Por isso tenham cuidado em pegar numa personagem e julgar que estou a fazer uma afirmação. Apenas tento explorar direcções e caminhos e ver onde isso nos leva. A religião pode ser um veículo para a esperança e para o desespero, em Mistborn vê-se esse contraste. Os seres humanos procuram a verdade, e alguns encontram-na na religião. Outros encontram-na noutros lugares, mas julgo que todos tentamos lá chegar de alguma forma. Temos de questionar, de fazer perguntas, de descobrir por nós próprios o que significa essa verdade. Eu encontrei paz e bons conselhos na religião, por isso acho que ainda é possível fazê-lo hoje em dia.
Como foi a experiência de completar “The Wheel Of Time” de Robert Jordan?
Foi fantástico. assustador mas fantástico. Para aqueles que não sabem Robert faleceu em 2007, e no dia do seu funeral a sua mulher, que eu não conhecia, ligou-me a perguntar se gostaria de acabar a série por ele. Sabia que eu era fã da série há muitos anos, e isso foi parte da razão de me ter escolhido – além de o primeiro livro Mistborn ter servido como uma espécie de currículo. Fiquei completamente siderado com o telefonema, não tinha tido qualquer vislumbre de que isto poderia ser o meu futuro, e acabou por mudar completamente a minha carreira. Trabalhei nisto 5 anos deixando para trás outras coisas que tinha planeado, tornando-me padrasto de milhões de fãs de Jordan. Foi extremamente gratificante, metaforicamente tive de entrar na oficina do mestre, logo após ele a ter abandonado, pegar em todas as ferramentas, ler todas as notas e ver o mundo através dos seus olhos. Era uma série que eu amava desde criança, e coube-me dar-lhe um final. Foi muito assustador, existiam muitas personagens e um trabalho infindável pela frente. Mas ter podido fazê-lo foi uma honra imensa.
Como foi o processo de escrita? Tentou escrever como Robert Jordan ou assumiu a escrita enquanto Brandon Sanderson?
Quando tentei escrever como Robert Jordan resultou numa paródia, não funcionou. Fi-lo ao meu estilo, tentando seguir as vozes das personagens. Disse aos fãs que não seria uma reprodução exacta da escrita de Robert Jordan, para imaginarem que seria como uma saga cinéfila, em que um novo realizador foi contratado tendo os mesmos actores dos filmes anteriores. Um pouco ao estilo de Harry Potter.
Há algumas referências literárias que considere importantes na sua escrita? Alguns escritores que tenham influenciado a sua forma de fantasiar o mundo?
Diria que Anne McCaffrey é uma grande referência. O Herman Melville de “Moby Dick” e de “Billy Bud”. Victor Hugo é também uma grande influência na forma como lido com a moral nos meus livros. Robert Jordan, claro. E depois autores como Melanie Rawn e Barbara Hambly, que me transformaram num leitor de ficção científica e que tiveram – e continuam a ter – um grande efeito sobre mim.
Apesar de por cá apenas conhecermos os livros editados pela Saída de Emergência, a série Mistborn irá muito além desta trilogia (publicada entre nós em 4 volumes).
Os outros terão lugar trezentos anos depois e são superdivertidos. Há novos conjuntos de personagens e cumpre-se aquilo que eu desejava com livros Mistborn: ver o mundo a desenvolver-se, algo que normalmente não vemos na fantasia. Assim, depois de uma série de fantasia épica, viajamos até 1910,1920, uma era de pico tecnológico, e quando essa terminar iremos até 1980 para um thriller de espionagem. A magia será comum a todos eles, apenas a tecnologia mudará.
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