“A denúncia” (Alfaguara, 2016) são “histórias sobre pessoas que morrem de fome ou sob os golpes de um regime absurdo, mas também sobre pessoas que têm como única opção fugir do seu país para poderem sobreviver.” Bandi, pseudónimo de um escritor que vive na Coreia do Norte, serve-se da escrita para denunciar o regime totalitário do seu país:
“(…)
Vivo na Coreia do Norte há cinquenta anos,
Como um autómato que fala,
Como um homem preso por um jugo.
Escrevi estas histórias
Impelido não pelo talento,
Mas pela indignação,
E não usei uma pena e tinta,
Mas os meus ossos e as minhas lágrimas de sangue.
(…)”
Nas palavras do jornalista Kim Seong-Dong, que na Coreia do Sul recebeu e publicou os manuscritos, o trabalho de Bandi foi “feito com dor, como um parto”, com risco de vida ou não permanecesse o seu autor, ainda que incógnito, a viver num país governado de forma tirânica e antidemocrática. Ao todo o livro apresenta sete histórias que se desenrolam entre 1989 e 1995, tratando temas distintos em torno de uma mesma ideia: a exposição da realidade e a crítica ao regime vigente na Coreia do Norte.
Encontramos relatos de gente com fé e crença na mudança, na verdade partidária. A entrega a uma causa e a decepção seguida pelo confronto com a realidade, com a arrogância e prepotência de quem tem poder. Um poder discricionário e tirano.
Segue-se a vivência de uma verdadeira ditadura do proletariado, traduzida na falta de liberdade para decidir e gerir emoções tão básicas como o medo e a ansiedade, na vigilância, perseguição e denúncia permanente, mesmo entre pares. A expulsão da sociedade, quando de alguma forma o comportamento não confere com o padrão, indiferentes aos motivos que mesmo quando conhecidos são, ainda assim, deturpados em nome de uma hegemonia e interesse geral.
A criação de um inimigo comum, de uma ameaça permanente ao sistema assim justificando e mobilizando a defesa incondicional e o aniquilamento de todo aquele que ouse não corresponder ou reconhecer o valor e a hegemonia do todo. A expulsão sem expiação.
A falta de liberdade para decidir onde viver, com quem viver e como o fazer. O papel social encontra-se definido e atribuído com caracter imperativo em nome de interesses e regras corporativas, alheias e indiferentes aos desejos e afectos, mesmo no drama familiar. A vontade e liberdade individual encarada como uma ameaça, algo que é preciso cortar a todo o custo.
Uma sociedade onde chorar em público é visto como ingratidão pela felicidade proporcionada pelo grande líder e, por isso, sancionado com penas extremas.
A dificuldade de reacção instalou-se, como se todos os cidadãos estivessem domesticados. Poucos ousam sequer questionar o sistema de castas imposto pelo partido, à partida determinando as possibilidades de acesso e progressão das famílias, indiferente ao mérito. As faltas cometidas pelo elemento de uma família permanecem como um rótulo que se perpetua de geração em geração, de forma fatídica e intransponível.
Uma sociedade onde a felicidade é obrigatória e as suas manifestações em público um dever e uma injunção sob pena das mais severas sanções. Há momentos e locais onde as gargalhadas são obrigatórias, num registo de verdadeira encenação de felicidade do povo, obrigado à veneração do seu grande líder, do partido e da gratidão geral e permanente, independentemente das condições deploráveis e paupérrimas em que a maioria vive.
A montagem é constante. Vestir o papel é uma questão de sobrevivência ainda que a existência seja tóxica, anestesiada pelo “cogumelo vermelho”, denominação atribuída ao partido e ao seu grande edifício vermelho.
Num livro revelador de grande desespero e humanidade dos seus personagens, Bandi coloca-nos em contacto com o quotidiano do seu país, recorrendo a relatos da vida do povo, de sobrevivência e surrealismo. No final, ressoa o apelo contra a indiferença.
Sem Comentários