Os tempos estão a mudar, cantava Bob Dylan no ano da graça de 1964, e a verdade é que o músico, brindado pelos membros da Academia Sueca com o toque de Midas, recebeu a ordem de escritor, “roubando” o prémio a conterrâneos como Philiph Roth, Don DeLillo ou Ursula K. Le Guin.
A decisão, que valeu à Academia os seus Warholianos 15 minutos de fama mais prolongamento, foi recebida entre a anedota e o fogo-de-artifício, trazendo à baila o que é isso da Literatura. Uma coisa é certa: muitos pouparam tempo a decidir uma vez que só tiveram de ouvir os discos.
O cenário nas redes sociais e vida pública foi de uma cavalheiresca guerra civil, com elogios de um lado e apupos do outro. Salman Rushdie foi um dos mais efusivos, afirmando que “de Orfeu a Faiz, as canções e a poesia têm estado intimamente ligadas. Dylan é o herdeiro brilhante da tradição trovadoresca. Grande escolha.” O nosso MEC também aplaudiu: “Dylan é inegavelmente um grande escritor. A Academia Sueca está a usar o Prémio Nobel para restaurar a literatura. Tomara que regresse à literatura oral. As histórias que não são escritas também podem ser grandes e imortais.”
Do lado dos contestatários houve igualmente grande rebuliço. Irvine Welsh entrou à Petit para dizer que este prémio é “marcado pela nostalgia, arrancado das próstatas rançosas de hippies senis e sem sentido“. Lídia Jorge trocou a violência pela melancolia mas não deixou de criticar a atribuição no Nobel a Dylan: “A literatura é tratada superficialmente pela Academia, que despreza as pessoas que dedicaram toda a sua vida à literatura. É triste.” Quanto a Richard Zimler, apontou baterias à vertente política da escolha: “O Prémio é dado apenas por razão geográfica, filiação política… Dario Fo é melhor que Tennessee Williams ou Ionesco? Modiano supera Philip Roth? A qualidade nunca será a preocupação do Prémio Nobel.”
Será Literatura aquilo que Dylan faz? Numa leitura abrangente e muito forçada da coisa talvez se consiga enfiar a carapuça, mas faria mais sentido o músico ganhar um Grammy – ou um Nobel musical, se houvesse tal distinção – do que um prémio que, em teoria, deveria ir para um escritor e não para um letrista. Seja como for, desta vez não será imperativo visitar à livraria da esquina ou procurar nas estantes das bibliotecas municipais: bastará navegar até ao Youtube ou ao Spotify e ouvir os livros do Nobel.
O melhor mesmo será olhar para este prémio como Salman Rushdie, na última edição do Folio, disse olhar para as redes sociais: não as levando demasiado a sério. Afinal, nunca a Academia Sueca quis ser tão Hollywoodesca.
Nota: as reacções à decisão do Nobel foram retiradas de um artigo de João Céu e Silva para o DN, que pode ser lido aqui.
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