José Martins Garcia foi combatente, professor e escritor. Açoreano, multifacetado, deixou o mundo em 2002 aos 61 anos, mas a sua marca perdura através de mais de três dezenas de obras.
“A Fome”, do latim fames, e “O Medo” do latim metu, que significam respectivamente estado emocional resultante da consciência de perigo e receio/apreensão, foram os dois conceitos que o autor usou para nomear o primeiro e o último livro desta trilogia editada pela Companhia das Ilhas. Pelo meio está um “Lugar de Massacre”, que significa assassinar, trucidar, fuzilar – esta última foi a palavra empregada para definir os anos de recrutamento. No final da leitura nota-se que a escolha dos títulos foi brilhante.
“Sempre me foi a fome uma entidade familiar. Profissão: faminto.”
No primeiro livro é relatada da vida de António Cordeiro, a personagem principal, na sociedade portuguesa da década de 70. Açoreano, à semelhança do autor, António Cordeiro deixa a sua ilha – o Pico – rumo a Lisboa., para fugir à fome. Fome de quê? De paz? De poder? Para o autor, trata-se da fome da satisfação da alma
“A todas as vítimas da paranóia e da incompetência dos déspotas, caídas para nada no campo do dever e do absurdo.”
É esta a dedicatória que inicia “Lugar de Massacre”, o segundo volume, e é através de Pierre Avince que José Martins Garcia relata a sua experiência, desta vez em cenário de Guerra Colonial. Com uma carga emocional bem mais pesada do que em “A Fome”, são retratados os horrores e medos vividos por milhares de vozes anónimas que foram obrigadas a permanecer no meio das florestas africanas com medo do próprio vento. Massacre da esperança, massacre dos sonhos e massacre da vida, mesmo que esta não tenha findado em terras africanas.
“O Medo” encerra esta trilogia. No lugar de um personagem principal, o autor mune-se de um conjunto de três pessoas para focar o período temporal da revolução e pós-revolução portuguesa. Mais uma vez, o título do livro é o que melhor o descreve: o medo, à semelhança da fome, também é subjectivo. Neste contexto, foi o medo que impulsionou a revolução e é medo que desta resulta devido à incerteza que daqui advém. Está presente em todas as decisões e etapas da vida, mas isso não se deve reflectir na ausência de tomadas de posição, especialmente quando dizem respeito a lutar contra ideologias que, de alguma forma, ferem a liberdade humana. O medo e a coragem andam a par. A coragem não é a ausência de medo, é ser capaz de esquecê-lo durante 3 segundos.
Esta trilogia descreve, cronologicamente, as vivências de José Martins Garcia desde a sua vinda para o continente, ainda durante a ditadura Salazarista, o recrutamento para o combate no Ultramar, o seu papel na revolução de ‘74 e os anos de incerteza que se seguiram. Apesar de não ser apresentada como uma biografia, Garcia recorreu a personagens – António Cordeiro, Pierre Avince – para mostrar ao mundo como o viveu e interpretou.
Para quem gosta de leituras mais fluidas e directas, estas obras revelam-se complexas devido à escrita em forma de prosa poética utilizada pelo autor. Contudo, para os mais corajosos, estas narrativas são uma óptima oportunidade de se aventurar neste estilo literário.
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