“Amaia sorriu ao lembrar-se das lendas que ouvira na infância à tia Engrasi. Estando naquele sítio, não era difícil aceitar a existência das criaturas mágicas que povoaram o passado das pessoas da região. Todas as florestas eram poderosas, algumas tremendas pela sua profundidade e mistério, outras pela escuridão e atmosfera sinistra. A floresta de Baztán enfeitiçava, com uma beleza serena e ancestral.”
Bebendo do romance escandinavo a sua faceta mais negra e psicológica, e do thriller norte-americano a sua parte mais racional e científica, “O Guardião Invisível” (Planeta, 2016) destaca-se dos thrillers policiais que nos últimos tempos têm proliferado pelas estantes portuguesas, ao cruzar ciência e superstição.
Se no início poderá parecer uma típica investigação policial sobre um assassino em série, rapidamente percebemos que o livro vai muito para além disso. E, se a qualidade deste género literário se mede pela capacidade de prender o leitor à história, não o fazendo largar até à última página, Dolores Redondo triunfa habilmente.
Neste primeiro livro da trilogia Baztán, a escritora transporta-nos para o País Basco, mais precisamente Elizondo, uma pequena localidade onde um assassino em série actua deixando um cenário macabro à sua passagem. “À volta dos cadáveres, apareciam pêlos de animal, restos de pele e pegadas dificilmente humanas, interligados a uma espécie de ritual fúnebre de purificação.” As vítimas são adolescentes, deixadas seminuas às margens do rio Baztán, com roupa rasgada, pêlos púbicos rapados e mãos em posição virginal.
A estes pormenores juntam-se outros ainda mais peculiares, que a autora descreve com tal riqueza que nos faz visualizar de imediato os cenários na nossa mente. Aliás, este é um dos pontos fortes da escrita de Dolores Redondo, a que se alia a forma como explora os detalhes forenses das investigações.
Como protagonista temos Amaia Salazar, que está mais envolvida no caso do que apenas como inspectora da Polícia Foral encarregue de dirigir a investigação. Amaia é uma mulher forte, competente e determinada, que luta constantemente para firmar a sua posição enquanto mulher num mundo de homens. Mas tem um passado secreto e sombrio que nos vai sendo revelado através de memórias da infância traumática, que viveu precisamente na localidade dos crimes, sua terra natal, de onde se procurou manter afastada até agora: “O mal obrigou-me a voltar.”
A escritora prima pelo desenvolvimento psicológico das personagens, explorando os recantos mais profundos da mente. Por vezes centra-se mais na vida pessoal da Amaia do que na própria investigação, o que dota a história de uma maior carga dramática e de grande misticismo – palavra-chave desta obra.
A mitologia do país Basco, a exploração das lendas, costumes e histórias da população local, bem como a atmosfera misteriosa do vale de Baztán, são os verdadeiros pontos diferenciadores. A superstição é a cereja no topo do bolo, que torna esta história poderosa, ao cruzar imaginário e mitologia com a vida real. A autora consegue evocar as criaturas mais inquietantes e, ao mesmo tempo, mais encantadoras. Amaia mora neste limbo de ser uma mulher de ciência – acreditando apenas em provas – e de viver “atormentada por fantasmas”.
“O Guardião Invisível” é um thriller policial original, com o ritmo, suspense, tensão e mistério nas doses certas, criando-nos a ansiedade de querer rapidamente saber o desfecho. As personagens fortes e cativantes, os lugares e lendas apaixonantes e a escrita envolvente da autora, que nos torna verdadeiros inspectores no terreno, fazem-nos querer mergulhar de imediato no segundo volume – “Legado nos Ossos” -, já lançado pela editora Planeta.
O livro vai ser adaptado ao cinema, sob direcção de Fernando González Molina, estando já, segundo a IMDb, em fase de pós-produção.
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