“Todas as árvores caminham sobre o Tempo, sobre as passagens das estações, porque nenhum outro movimento lhes resta. Existem, simplesmente, dividindo-se entre o corpo visível que se estende à luz e o corpo inferior que vive de forma encoberta”.
Servindo-se da natureza e, em particular, da árvore, para representar simbolicamente a vida e o carácter cíclico da evolução – vida, morte e regeneração -, Possidónio Cachapa arrebata com o seu mais recente romance “Eu sou a Árvore” (Companhia das Letras, 2016).
As árvores que crescem em posição vertical perdem as suas folhas e regeneram-se por incontáveis vezes, morrendo e renascendo de modo cíclico. Surge aqui a ideia da árvore como uma concentração da fonte da vida, representando o masculino e o feminino, a reprodução, a apreensão e compreensão da própria existência. Samuel, um homem citadino, pujante no físico e nas convicções, arrebata Jude, sensível e sonhadora, para uma vida no campo, engolidos pelas exigências egoístas da natureza e da sobrevivência.
“O país ainda estava morto e a boiar à superfície dos restos da ditadura quando Samuel e Jude se encontraram pela primeira vez. No tempo em que as pessoas caminhavam pelas ruas das cidades como se vivessem numa aldeia bem vestida.”
(…)
“Samuel já andava a pensar há muito tempo em desistir do curso de Medicina. Mas como é que se diz a um pai-que-tudo-sabe que já não se quer ser doutor? Como é que se diz à mãe-que-tudo-espera que terá de desdizer o já dito sobre o brilhante futuro que, como se sabe, ainda estava para vir, porque é isso que o futuro faz: fica ali aos pinotes dentro da gente, à espera de luz verde para vir cá para fora dançar.”
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“Jude não tinha mãe. Em corpo, pelo menos. Os retratos dela continuavam pendurados pela casa ou pousados sobre os móveis, para provar que há pessoas que nunca vão realmente embora. Mesmo se um cancro galopante pareceu levá-las.”
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“Não falaram deste namoro às famílias até terem atravessado o rio. Um dia, ela pegou na guitarra, num caderno onde gostava de apontar coisas que lhe vinham à cabeça ou desenhar, e que nessa tarde não viria a receber nada. Ele foi à praça muito cedo e comprou uma melancia. Apenas isso.”
A clareza, fluidez e sensibilidade da narrativa de Possidónio Cachapa transmite abertura e intensidade. Facilmente se consegue sentir a ânsia, ambição e desespero de Samuel, patriarca que, sem intenção, se vê perdido e aprisionado nas suas próprias concepções de vida e do outro, incapaz de se aproximar física e emocionalmente dos outros que o rodeiam, que ama e que afasta através da inflexibilidade em que persiste.
Em simultâneo pressente-se o desmoronar do sonho de Jude, mulher sensível que se deixa aprisionar sem conseguir pacificar a sua ânsia de ser mais, de viver mais; Vitória, a filha mais nova que se desejara rapaz e que nasceu limitada em termos físicos, mas com tamanha sensibilidade interior; Esperanto, o segundo da descendência, sempre aquém daquilo que Samuel imaginara à sua imagem e ansiava para sucessão; e, finalmente e desde sempre, Laura, a mais velha, o primeiro rebento que floriu, murchou e se renovou fiel à natureza de resistente. Laura, Esperanto e Vitória, a descendência desejada mas tão distante de corresponder exactamente ao ensejo de Samuel e às necessidades de Jude, mas ainda assim prova da fertilidade.
As personagens são várias como vários são os epicentros da narrativa, rica, quase poética, talvez das melhores surpresas para quem não conhecia Possidónio Cachapa e uma confirmação certa para quem já o segue nas suas várias publicações anteriores. Dividindo o trabalho entre cinema e escrita, o autor de “Eu sou a Árvore” transmite minúcia e precisão na sua escrita, como se cada ideia, cada frase fosse essencial, com um tempo próprio, ao ritmo da natureza, sem fertilizantes ou pesticidas, sem elementos tóxicos e, portanto, sem risco de contaminação ou deturpação. O valor nutricional e energético é garantido e, no final da leitura, fica-se mais rico, fortalecido na convicção de que vale a pena acreditar que o ser humano, como a natureza em geral, é capaz de se renovar, fazendo renascer aquele galho, aquele ângulo, aquele fruto que se julgava definitivamente perdido.
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