João Felgar, juiz de profissão, abandonou a carreira para se dedicar ao que lhe move a alma: a escrita. Depois do primeiro e grande sucesso ‘’Terra de Milagres’, que dedicou às filhas, o autor brinda agora o mundo da literatura com ‘’Síndrome de Antuérpia’’ (Clube do Livro, 2016), um romance assombroso sobre família, aparências e guerras interiores.
A narrativa começa com Justiniano Alfarro – ou simplesmente Justo – a ser preso pelo assassinato de Castiça, a palhaça da aldeia, a quem tudo é desculpado por ser ‘’louca’’. Antuérpia, filha de Justo e Cassilda, não vai descansar até conseguir descobrir se o pai é mesmo culpado ou não. Neste processo, desenterra histórias de família, amores perdidos e descobre facetas do pai a que nunca o associaria, por ser considerado um homem perfeito, tanto por fora como por dentro.
Há três mensagens importantes a reter desta narrativa: a primeira surge de família rica mas disfuncional, fruto de um casamento privado de amor ou qualquer outro tipo de sentimento, arranjado pela matriarca da família, que vai fazer Justo procurar amor fora de casa. Apesar deste facto ser conhecido na aldeia, é algo que não se comenta pelo respeito que a família representa e por haver um código de honra sobre o que pode ser mexerico ou não. Este cenário era usual entre as famílias mais ricas e o autor retrata acertadamente as consequências de tais actos, através da família Alfarro:
‘’O privado não é aquilo que os outros não sabem, é o segredo que todos guardam.’’
A segunda ideia é o processo de transexualidade descrito através da personagem Célio, que mais tarde se transformou em Desirée e morreu como Castiça. Ao longo da história, o leitor acompanha todo o percurso de transformação de Célio, em busca de um corpo feminino para combinar com a sua alma de mulher. À semelhança do que acontece na actualidade, ainda há muito para desmistificar acerca da transexualidade, mas o mais importante de ser entendido são os sentimentos de quem sofre por nascer num corpo que não sente ser seu. O autor consegue-o expressar de uma forma sublime:
‘’Aquilo era lubrificante de motores de avião (…). Doía horrores as injecções, com umas agulhas grossas (…). Depois tapava-se os buracos deixados na pele com verniz das unhas para que aquilo não escorrer para fora, e rezava-se para que não infectasse nem criassem úlceras (…) O peito ficou bem mas o rabo ficou pequeno, pelo menos a pedir mais um litro de cada lado.’’
Por fim e não menos importante, João Felgar fez um trabalho exímio a construir as personagens femininas. Este livro está repleto de mulheres fortes, determinadas e lutadoras: Cassilda Alfarro, esposa de Justo que, apesar de ter casado por obrigação e estar ciente das traições do homem, sempre se manteve fiel à sua família, construindo uma reputação de respeito e honrando nas suas obrigações; Antuérpia, filha de Justo, mais parecida com a mãe do que gostaria, que vai correr mundos e fundos até descobrir toda a verdade sobre o pai; e, por fim, Silvana, uma mulher massacrada pela vida, com um fado que a incumbe de tratar das pessoas em fim de vida deixando a sua própria para segundo plano, fugindo à sua sina e, apesar das relações amorosas fracassadas, nunca desistir de tentar reconstruir a sua vida;
O enredo e as personagens estão muito bem construídas, a história é simples mas cheia de enredos, tornando a leitura fluída e interessante, amarrando o leitor do início ao fim, viciando o mesmo nas histórias de vida tão variadas dos protagonistas. Num só livro, o autor consegue juntar e encruzilhar vidas diversas, onde cada uma influencia a outra sem o saber, numa espécie de efeito borboleta sem fim.
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