Se tivéssemos de escolher uma cor para pintar as paredes atrás das quais vivem e respiram os livros de Dulce Maria Cardoso, provavelmente não hesitaríamos em apontar, de entre um volumoso catálogo de tintas, uma das mais bonitas tonalidades de preto.
Em “O Retorno”, fantástico romance onde o regresso de uma família a Portugal se fazia através dos olhos de um adolescente, ainda se viram por momentos brilhar as cores do arco-íris, mas a publicação de “Tudo são histórias de amor” logo veio devolver a Dulce Maria Cardoso aquilo que é de Dulce Maria Cardoso: o amor negro e trágico, as palavras como flechas incendiárias, a revelação do lado mais obscuro da existência. Temas que atravessam “Os meus sentimentos” (Tinta da China, 2014 – reedição; original de 2005) de uma ponta à outra, romance que se lê como uma lengalenga ininterrupta.
É uma noite de temporal aquela que provoca o acidente de Violeta, mulher encharcada em aguardente que conhece bem os seus maiores inimigos – os pelos -, bem como as armas a usar contra eles. Enquanto observa uma gota de água suspensa no vidro estilhaçado, que teima em não cair, Violeta leva-nos numa viagem ao passado, recordando aquele que poderá ser o último dia da sua vida e contando, sofregamente, uma história onde cabem os pais, a filha, a criada, um bastardo e ecos e mais ecos de uma vida feita apenas de segredos e mentiras.
As personagens são todas de carne e osso e, a seu lado, caminham pesadamente sombras: Dora, a filha de Violeta, trabalha na caixa de um supermercado e tem, nos avós desaparecidos, o modelo que os pais – a mãe, mais precisamente – nunca lhe ofereceram; Ângelo é um palhaço sem graça, que vive num apartamento de duas assoalhadas habitado por um elefante de jade, bailarinas e uma fruteira de cisnes; Violeta é «uma obesa indecisa entre o tipo I e o II», que nas estações de serviço refreia os apetites sexuais socorrendo-se de camionistas de ocasião. É uma vendedora de cera e acessórios de depilação, com a mala do carro cheia de brindes tais como galheteiros em inox ou paliteiros em porcelana.
A história, onde não há lugar sequer a um ponto final, alterna o relato na primeira pessoa com frases dispersas, entre censuras parentais, feridas na consciência, ensinamentos em francês, anedotas já muito batidas e tropelias gramaticais, repetidas até à exaustão.
Romance vertiginoso sobre a decadência física e moral de uma família que foi crescendo entre a mentira e o silêncio, “Os meus sentimentos” é também o relato autobiográfico de uma mulher caída em desgraça, incapaz de perdoar, de amar ou de deixar para trás um passado de agonia. Alguém que vai repetindo, como uma ladainha, que voltará a tentar no dia seguinte, até que uma cruel verdade desfila perante os seus olhos: mas e se não houver amanhã?
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