Primeiro houve “Nós”, de Zamiatine, e “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley. Depois, um meteorito chamado “1984”, saído da imaginação febril de George Orwell. Pelo meio houve, ainda, um livro que até agora terá passado ao largo de muito bom leitor e apreciador de distopias: “Kallocaína” (Antígona, 2016), da autoria da sueca Karin Boye, considerada um dos nomes maiores da literatura sueca do século XX.
A narrativa tem lugar num futuro sem ponta de humanidade, onde um estado totalitário controla uma sociedade que, em troca da promessa – não cumprida – de segurança, sacrificou a sua personalidade, vontade e espírito crítico. Logo nas primeiras páginas, Boyle mostra de que forma decorre a vida deste estranho mundo:
“…em tempos idos, durante a época civil, as pessoas tinham de ser aliciadas a esforçar-se e a trabalhar com a expectativa de conseguirem casas mais espaçosas, comida mais refinada e roupas mais bonitas. Agora, nada disso era necessário. Um apartamento-padrão – com um quarto para os solteiros, dois para as famílias – era suficiente para todos, dos mais humildes aos mais meritórios. As refeições confeccionadas nas cozinhas centrais dos edifícios satisfaziam tanto o general quanto o soldado raso. O uniforme comum – um para o trabalho, um para os tempos livres e um para o serviço militar de vigilância – era igual para todos, para homens e mulheres, chefes ou subalternos, excepto nas divisas.“
O Estado Mundial, feito de cidades subterrâneas e envolvido numa guerra permanente, é dono e senhor dos seus consoldados que, temendo denúncias e perseguições, se tornaram seres desprovidos de qualquer emoção ou juízo crítico.
A personagem central de “Kallocaína” é Leo Kall, um cientista que descobre um soro da verdade e, num gesto narcisista, o decide baptizar a partir do seu primeiro nome. Um soro que será mais eficaz do que qualquer regime de tortura ou propaganda, e que será usado pelo Estado para derrubar os últimos resquícios de individualidade, que habitam nos pensamentos dos seus cidadãos.
Nesta sociedade, à semelhança do que acontece sobretudo em “1984”, todos os lugares são vigiados, e poucos são os que se atrevem a conspirar contra o regime vigente. Todos os lares são perscrutados, e até mesmo a sexualidade individual ou em grupo é acompanhada pelos muitos ouvidos do Estado. As assistentes domésticas, tão úteis às famílias, têm a obrigação de apresentar ao Estado um relatório sobre a família no fim de cada semana.
A relação de Kall com a mulher é frágil, pouco íntima e de uma desconfiança extrema, estando este à espera de “uma certeza que pusesse fim ao meu casamento.” Aliás, é comum que os pais se separem quando os filhos ficam “prontos para os campos de juventude.” Os pais não criam, por hábito e protecção, relações de intimidade com os seus filhos, uma vez que estes são pertença do Estado, desaparecendo do seu radar logo na adolescência. Até porque “seria necessário quase um milagre de coincidências para que os pais conseguissem voltar a ver os seus filhos a partir do momento em que estes fossem transferidos para outra localidade.” As crianças pequenas são incentivadas a brincar com explosivos ligeiros. Serão parte das crianças do novo tempo, com uma postura objectiva e correcta.
Há cidades químicas, cidades do calçado e, entre cada cidade dedicada a uma actividade específica, não existe qualquer ligação além da oficial, de modo a evitar a espionagem. O único grande sacramento partilhado por todos gira à volta de uma única palavra, avessa a toda e qualquer individualidade: a comunhão.
Muito interessante é a personagem de Rissen que, perante o delírio de Kall – “Consigo imaginar uma época em que todos os cargos serão ocupados somente após um exame com Kallocaína, tal como agora exigem os testes psicotécnicos” -, responde de forma muito irónica e em tom de aviso: “Nenhum consoldado com mais de quarenta anos tem a consciência limpa.“
Nestes estranhos tempos modernos, onde o terrorismo entrou de rompante no quotidiano, a Inglaterra fez um manguito à Europa e um perigoso idiota se arrisca a ser presidente de um império, “Kallocaína” é um livro de leitura obrigatória, que mostra que uma sociedade pintada de negro e avessa ao pensamento livre já esteve bem mais longe do mundo como o conhecemos – e já mais instalada noutros cantos da terra.
Para além de “Kallocaína”, Karin Boyle publicou várias antologias poéticas, e esteve entre os fundadores da revista de vanguarda Spektrum, que apresentou T.S. Eliot e autores surrealistas aos autores suecos. Foi membro do movimento Clarté, de pendor socialista e anti-fascista, e viajou pela Europa nos anos 30, tendo visitado a União Soviética de Estaline e a Alemanha de Hitler, algo que se pressente em “Kallocaína”, o seu derradeiro romance. Suicidou-se em 1941, no dia em que os nazis invadiram a sua amada Grécia.
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