No universo cruzado dos thrillers e dos policiais, são muitas as propostas numa concorrência que, de tão apertada, já chegou ao ponto do nó cego. Porém, se quisermos eleger de entre os muitos autores e autoras alguém que misture um olhar de lince para a imperfeição humana, um sexto sentido para expor a crueldade, um humor carregado de ironia e apontamentos sexuais e uma lata de todo o tamanho, a lista acabará facilmente com um nome único na página: Gillian Flynn.
Com três romances publicados em Portugal – curiosamente lançados ao contrário da sua linha temporal -, Flynn alcançou já o estatuto de autora de culto, reforçado pela adaptação ao cinema de “Em Parte Incerta”, mesmo que, no grande ecrã, se tenha perdido muita da mordacidade que havíamos encontrado no papel. Outra vez Ben Affleck, apetece dizer.
Poucos autores se atreverão a começar um livro desta forma: “Eu não deixei de bater punhetas por não ser boa. Eu deixei de bater punhetas por ser a melhor.” A confissão, recolhida em “Pequenos Vigaristas” (Bertrand, 2016) chega-nos de uma jovem astuta, criada desde muito cedo pela mãe para dar o golpe ao mundo, e que vive do trabalho manual para encher os bolsos e espalhar a felicidade. Um trabalho que, ao contrário de outros, pode ser considerado estável: “Quando as pessoas me fazem aquela pergunta que toda a gente faz, “O que faz?”, eu digo “Trabalho na área do serviço ao cliente”, o que é verdade. Para mim, um bom dia de trabalho é quando se faz muita gente sorrir. Eu sei que isto parece muito profissional, mas é verdade. Quer dizer, eu preferia ser bibliotecária, mas preocupa-me não ser um trabalho estável. Os livros podem ser temporários; as pilas são para sempre.”
De qualquer forma e um tanto inesperadamente, a jovem narradora passa dos trabalhos manuais a vidente, lendo auras e exercendo a desarte da vidência na empresa Palmas Espirituais. Excelente observadora do comportamento humano, cedo começa a ganhar reputação, algo que irá ser testado até ao limite quando Susan Burke entra em cena. O diagnóstico da narradora é feito em três tempos: uma mulher rica e infeliz, ansiosa por um pouco de drama e emoção.
Porém, quando vai visitar a estranha casa vitoriana onde Susan vive – e que representa a causa do seu terror e angústia -, percebe que talvez essa coisa dos fantasmas seja, afinal, algo de muito sério. Isto, somado a um enteado com ar de psicopata que a ameaça de morte a cada uma das esquinas e salas onde se encontram, faz com que mais uma vez seja o mal, bem como as formas que este assume nas almas humanas e nos espaços geográficos, o grande protagonista.
Num conto com pouco mais de setenta páginas, Gillian Flynn comete a proeza de se passear por vários géneros literários, ao mesmo tempo que o estilo de escrita se vai moldando e adaptando, seja ao registo cómico ou ao frenesim sobrenatural. Indispensável para os fãs de Gillian Flynn e, para aqueles que ainda não a conhecem, um excelente cartão-de-visita.
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