Lido “Esse Cabelo” (Teorema, 2015), ocorre-nos um trecho de Herberto Helder sobre o estilo, que abre o excelente “Os Passos em Volta”. Reza assim: “(…) o estilo é um modo subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação. (…) Pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte.”
Embora se trate de uma quase alegoria, ironicamente simplista, à vulgarização e inusitada rotulagem da linguagem poética, a forma sintética como o malogrado poeta consegue abarcar algo tão dissonante e eminentemente pessoal é a base perfeita para uma (bem-sucedida) tentativa de penetrar nos múltiplos sentidos, por vezes díspares, desta pequena maravilha criada por Djaimilia Pereira de Almeida.
A ideia de retrato é fundamental à estrutura e desenvolvimento do livro. As referências a fotos de família, amigos, locais, espoletam memórias, evocações, reconstituições sentimentais e biográficas, criando um contínuo espaço-tempo que lhe permite livremente avançar e recuar na sua história, sem que se perca o fio à meada, facilitando a delicada intromissão da sua voz, via aforismos certeiros e reflexões que surpreendem pela sua profundidade e beleza.
Em entrevista a Isabel Lucas, aquando do lançamento do livro, a ligação à fotografia é explanada pela escritora. “Quando comecei a escrever andava interessada em álbuns de fotografias de família e no que aprendemos ao folheá-los. Queria reproduzir num livro essa experiência, mas não sabia muito bem o que fazer.” (…) “a relação com o álbum é como apercebermo-nos que antes de termos começado já cá estávamos, que somos como uma espécie de deixa, de uma frase numa conversa entre estranhos familiares“.
Certamente, muitas serão memórias “falsas”, forjadas pela sua ficção pessoal, pela facilidade com que a evocação e reconstituição tantas vezes subtraem factos para acrescentar imaginação. Porém, entre episódios cómicos e ligeiros e outros com o peso dos dias mais cinzentos, escutamos outra narrativa maior que norteia Djaimilia e que poucos (infelizmente) se atrevem a tocar e descrever: a história dos portugueses que regressaram a Portugal (neste caso, sem ligação com o movimento de retorno de 1975, mas mais tarde, já que Djaimilia nasce em Luanda em 1982 e só depois a sua família chega a terras lusas) e dos africanos que para cá emigraram, dos seus ascendentes e descendentes, gerações de esquecidos em todos os quadrantes da sociedade e da cultura, a quem falta a voz numa nação que fizeram e fazem também sua, com suor e lágrimas, com sonhos entalados entre o mar que os separa da terra que ainda chamam sua e uma realidade quotidiana da qual são meros figurantes esquivos.
“O sonho frustrado do meu avô angolano de se tornar cidadão português”, convive com os passeios anónimos em Oeiras da pequena Mila e do seu grupo de amigos e com o “conceito amputado de Lisboa”, onde eram “invisíveis” e a vida dos lisboetas lhes estava “vedada”. Lisboa, que também era e é sua há décadas, apenas lhes devolve uma “visão parcial de nós mesmos”, entre “vidas hipotéticas” e “recordações de vida”.
Mas aqui, nada é panfletário ou reivindicativo. É pessoal, familiar, mas também transbordante de propositada incompletude, de convite à recriação do muito que fica por dizer e se subentende. “Este livro é escrito num pretérito imperfeito de cortesia (…) a virtude devida ao que não se pode dizer”.
O cabelo é metonímia para o que vai passando na cabeça que o sustenta, réplica de outros, indomados, que se foram miscigenando e vogando noutras direcções, com outras cores e penteados. Com ele, a narradora vive o primeiro choque mais óbvio com a portugalidade. “Então Mila, quando é que tratas esse cabelo?”, perguntava a sua avó branca. A narradora (Mila ou Djaimilia? A fusão de personas é ardilosa) não deixa dúvidas: “O cabelo era então distintamente uma personagem, um alter-ego presente na sala”. “O descuido que sempre admiti ao meu cabelo ressurge-me enquanto sinal de que aqui me sinto em casa (…). Falo neste cabelo mas, sem prejuízo e precisão, poderia falar nesta cabeça.”
“O amor ao supérfluo ajuda a entender o que somos”, confessa-nos Mila. “Aquém de um certo limiar de privilégios, a dedicação apaixonada a coisas de outro modo dispensáveis pode não chegar a ter lugar. Satisfeitas as condições básicas de sobrevivências, porém, a entrega ao supérfluo distingue a nossa humanidade.”
Com este pressuposto em mente, a aparentemente frivolidade que noutra pena seria o tema do cabelo e do “catálogo de salões” por onde passou, torna-se pretexto para desfiar o novelo da sua herança, com a generosidade de quem, até nas pequenas peripécias, encontra algo que a estrutura e eleva.
A sua construção como pessoa, mulher, orgulhosa nas suas raízes, a sua “ontogénese”, é descrita com a atenção ao detalhe e às contradições que a cercam, entre apartes desdenhosos e assomos de clarividência, que brilhantemente espelha no uso principesco que faz do português, do que cada palavra dá e oculta.
Apesar do cariz predominantemente memorialístico e autobiográfico da obra, a escritora refugia-se na ilusão e na ficção para, mais livremente, poder explanar as suas ideias, sem outras preocupações com quem se pudesse reconhecer nas suas palavras, declarando em entrevista que “nem todos os momentos do livro dizem respeito à minha vida, experiência ou maneira de ver as coisas, nem ao que foi a minha história de vida.”
Mas o que torna esta obra especial é também o seu carácter híbrido, reflexo literário da própria narradora/autora, juntando à evidente autobiografia, a reflexão, o comentário sociológico e político, o fresco de um Portugal que só chega aos media e à literatura pelas piores razões (com honrosas excepções no passado mais recente).
O ofício da escrita é dissecado com bisturi afiado, de forma quase científica, analítica e até dura, retirando-lhe a dimensão mítica e o peso do tormento romântico que lhe surge associado, como se a narradora estivesse simbolicamente a fechar um ciclo da vida (que esperamos longa) da sua escrita.
Apesar de a ideia base do livro derivar da sua tese académica de doutoramento, é desse rigor da avaliação (baseada no número de citações e outros parâmetros), dessa falsa completude e cientificidade que considera desligados do verdadeiro trabalho intelectual, que Djaimilia definitivamente se afasta nesta sua estreia literária, criando no processo uma voz literária única, que urge cuidar e incentivar.
“Estar em minoria não consiste apenas em tomar de empréstimo a iconografia da nossa intimidade; consiste em apagar o que pode existir de singular não na vida que vivemos, mas na que não vivemos. A história desse empréstimo parece ter pouco de colectivo. Assemelha-se antes a uma inaptidão pessoal para nos lembrarmos melhor de quem não chegamos a ser. A memória é um demagogo: não nos deixa escolher o que vemos; alimenta-se da tentação de fazermos menos do que não fomos. (…) A única noção admissivel de seriedade parece-me agora a de honrar não quem tenho sido, mas quem julgo nunca ter chegado a ser. (…) Não sei pentear-me por escrito sem perder um pouco a mão ao livro.”
A busca da identidade, pelo mergulho na memória mais íntima, não é tema virgem na literatura, mas hoje, talvez mais do que nunca, é urgente convocá-lo e relê-lo. Encontrar esta identidade africana, portuguesa, miscigenada, tão claramente exposta e retratada com trechos dignos de constante citação, é um achado digno de louvor, pelo que faz para unir o que a história tantas vezes separou, e como bússola no caminho, tantas vezes sinuoso, da compreensão da diferença e da verdadeira empatia com o nosso vizinho.
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