“Anna W. é francesa e funcionária do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Foi nomeada directora dos Domínios Nacionais franceses em Santa Helena, um nome pomposo que se aplica às pequenas casas onde o imperador Napoleão, depois de ter sido deposto e aprisionado pelos ingleses, residiu entre 1815 e o seu falecimento, em 1821.” O que fará uma mulher de quarenta e seis anos de idade, solteira e sem filhos, possuidora de uma elegância descontraída, assumir um posto que seria destinado a funcionários caídos em desgraça?
Tendo por base uma generosíssima narrativa histórica, “Passos Perdidos” (Tinta da China, 2016), de Paulo Varela Gomes, serve-se dos encontros e desencontros de Anna W. e C. Brandon, um professor-investigador e uma jovem enigmática, “não exactamente bonita mas dolorosamente atraente“. Ao longo do romance acompanhamos ambas as personagens numa dança de interesses, expectativas e percursos arquitectónicos, históricos e amorosos, nem sempre confluentes, numa feliz premonição fornecida desde logo pelo título da obra: “Passos perdidos”, termo que designa a sala de espera em diversos edifícios – enquanto esperam, as pessoas vão passeando e dando passos de um lado para o outro; por vezes não conseguem obter o que pretendem, e os seus passos são mesmo perdidos, literal e simbolicamente.
Na primeira parte do livro somos bafejados por um generoso retrato da ilha de Santa Helena, localizada no meio do Oceano Atlântico, uma das mais pequenas e isoladas ilhas do mundo, local onde Anna W. se sente protegida, “ilha de uma porta só“, especialmente depois de ter passado Paris, Antuérpia, Bruxelas e Munique na década de 70 e, nos dez anos seguintes, por Bijapur, Bombaim e a ilha de Diu.
Fazendo-se sentir como um narrador intruso, sem pejo em se mostrar conhecedor de cada pormenor do enredo, tecendo comentários, críticas e recomendações, em vários momentos Paulo Varela Gomes deixa transparecer a ânsia de inserir as suas concepções e experiências de vida, fazendo-o sem parcimónia, dirigindo-se ao leitor (ou leitora, como muitas vezes o profere). Nestes momentos pressente-se a urgência do autor (narrador) de nos presentear e influenciar com a sua elaboração sobre a história e a vida.
“Uma obsessão académica convertida em ficção sem fronteiras“, palavras de Luis Ricardo Duarte a apresentar, no JL, este trabalho de Paulo Varela Gomes, crítico, historiador e professor de arquitectura, recentemente falecido, quatro anos depois de lhe ter sido diagnosticado um cancro. Depois do diagnóstico o autor publicou três romances, um dos quais, “Hotel”, venceu o prémio PEN Narrativa em 2015, uma colectânea de colunas para jornais e terminou mais um romance e um livro de contos. “Todavia, não houve um único dia em que não tenha pensado na morte. Nem um. Ao princípio não receei mas também não compreendi essa Senhora de Negro e, portanto, ofereci-lhe de bandeja as inúmeras oportunidades que, demoníaca, busca dentro de nós para nos fazer a vida num inferno ou para nos levar. É verdade que a vontade de viver teve desde sempre mais poder sobre mim do que a desistência perante a morte ou a ida ao seu encontro – já não estaria aqui se assim não fora“, palavras de Paulo Varela Gomes que ajudam a enquadrar a urgência de partilha que se sente em “Passos Perdidos”.
Entre pares académicos foi destacado pela sua “capacidade de mobilização das pessoas que o rodeavam, designadamente os alunos, onde deixou marcas em várias gerações, pela energia e pelo brilhante raciocínio“. Nascido em 1952, Paulo Varela Gomes licenciou-se em História, fez o mestrado em História da Arte e doutorou-se em História da Arquitetura, tendo sido professor da Universidade de Coimbra, onde deu a última aula em dezembro de 2012 sob o título de “Do sublime em arquitetura”.
Em “Passos Perdidos”, conduzidos pelo romance de Anna W. e C. Brandon, terminamos com um ganho de informação sobre história e arquitectura, cinema, política e laivos de informação autobiográfica sobre o autor. O êxtase alcança-se acompanhando as personagens (e o autor) em experiências esteticamente poderosas, partilhadas através de descritivos detalhados, sedutores e íntimos.
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