Não é certo que o pequeno Samuel seja de origem checa ou tenha, com esta República, uma relação sanguínea ou de pura paixão. A verdade, porém, é que este pequeno se viu metido numa situação 100 por cento kafkiana, onde apenas o resultado da transformação animal foi diferente da de Gregor Samsa que, um dia, havia acordado na pele de um monstruoso insecto: “Certa manhã, ao acordar, o Samuel deu por si na cama transformado num gigantesco hipopótamo.”
A referência a Kafka não é inocente neste “Tão Tão Grande” (Orfeu Negro, 2016), surgindo umas páginas depois devidamente desenhado e transcrito, não faltando o muito vívido segundo parágrafo – ou pelo menos parte dele – escrito por Kafka de um livro que virou do avesso a Literatura: “Estava deitado de costas, umas costas tão duras como uma carapaça e, ao levantar um pouco…“
Transformado num hipopótamo de 528 quilos, o Samuel vê-se a braços com uma série de problemas, além de tentar evitar que alguém da família entre no seu quarto por estar já muito atrasado para a escola: as pantufas deixaram de lhe servir, o espelho torna-se demasiado pequeno, um estranho bigode parece ter aparecido do nada.
Mora aqui uma metáfora visual, colorida e muito bem-humorada, sobre toda a beleza e sobretudo estranheza que o crescimento traz consigo, alimentado a dúvida, o medo e o pânico em quem vê, da noite para o dia, o corpo mudar de forma e a voz soar como se viesse de uma boca alheia.
Catarina Sobral dá vida a um quarto e alma a objectos usando uma reduzida paleta de cores, que são já uma imagem de marca Sobraliana: preto, azul, vermelho, amarelo e, se quiserem, o branco. Há também um jogo com o lettering, que surge transformado e aumentado quando o pequeno hipopótamo diz coisas como “Estou com dor de barriga” ou “Estou quase pronto” com a sua voz “tonitruante”. Mais um volume para a já obrigatória história ilustrada de Catarina Sobral, que parece brilhar ainda mais quando chama a si só a autoria de texto e ilustrações.
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