“Sobre a cómoda da sala, em frente de uma enorme fotografia a preto-e-branco da minha mãe, a mergulhar numa piscina em vestido de noite, havia um velho e belíssimo gira-discos onde tocava sempre o mesmo vinil de Nina Simone e a mesma canção: Mister Bojangles. Era o único disco com direito a passar naquele gira-discos: as outras músicas tinham de contentar-se com um aparelho estereofónico mais moderno e um tanto ou quanto insignificante. Aquela música era mesmo diferente, era triste e alegre ao mesmo tempo e, ao ouvi-la, a minha mãe ficava no mesmo estado. ”
No seu romance de estreia, Olivier Bourdeaut transporta-nos para uma atmosfera musical, onde amor e loucura são parceiros de dança e o sonho e a realidade se fundem a um nível tal que o leitor não mais os consegue distinguir.
“À Espera de Bojangles” (Guerra e Paz, 2016) é a história de amor de um casal que vive em clima de festa perpétua. Aqui, “a realidade banal e triste” dá lugar a belas histórias inventadas, a dias imaginários, a “manguitos às convenções” numa aura de pura extravagância e fantasia.
O pai faz “gym tonic” – exercícios de musculação intercalados de grandes goles de gin-tónico -, a mãe só tem direito a nome fixo uma vez por ano – nunca sendo tratada pelo mesmo nome dois dias seguidos – e a família só fica completa com a Menina Sem Préstimo, uma grande ave exótica que deambula no apartamento e que é passeada na rua pela trela.
É pelo olhar maravilhado e infantil do filho que vamos seguindo a vida da família que, de incompreensível e irreal, passa com grande naturalidade a fascinante e encantadora aos olhos do leitor. Aquela que, nas primeiras páginas, era uma história aparentemente simples, vai-se revelando mais complexa quando percebemos que a loucura contagiante da mãe é descrita pelos médicos como “histeria, bipolaridade, esquizofrenia”, que um dia a poderá levar longe de mais.
Numa escrita melodiosa, leve e fluída e com um toque de poesia e sonho, Olivier Bourdeaut conquista o leitor pela exuberância e alheamento da realidade das personagens, que são a grande riqueza deste livro. Profundamente construídas, levam-nos subtilmente à reflexão sobre assuntos sérios e duros que a loucura procura esconder.
O ponto de vista do filho é alternado com o do pai, através de citações de cadernos de memórias que acrescentam grande riqueza à leitura e uma visão mais completa dos acontecimentos, sempre relatados com grande serenidade apesar de em nada se enquadrarem naquilo que se consideraria uma vida normal. Ao som de “Mr. Bojangles” de Nina Simone, o leitor facilmente entra na dança, partilhando os estados de alma das personagens, umas vezes alegres, outras vezes tristes, numa agradável descoberta.
“À Espera de Bojangles” é um convite a ultrapassar a ténue fronteira entre a doce loucura e a amarga realidade, sempre num ritmo dançante em que a alegria dá lugar à tensão a cada virar de página. Fascinante, eufórico, por vezes mesmo surreal, esta é uma ode ao “amor louco” que faz o leitor ir dos risos às lágrimas, nunca perdendo a esperança. Isto “… porque há mentiras que valem muito mais do que a verdade.”
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