Não existem muitas figuras históricas que personifiquem tão bem o despontar do renascimento europeu. Jacques Coeur simboliza, sobretudo, dois aspectos: a ascensão burguesa e, por sua vez, a mobilidade de classes outrora rígida; o relacionamento com o oriente, na forma como a troca comercial se sobrepôs a qualquer idiossincrasia religiosa. Sim, o dinheiro fala mais alto.
Por sua vez, Jean-Christophe Rufin é também um exemplar homem erudito, daqueles que, a julgar pela fotografia, deixa um rasto de água-de-colónia por onde passa. Trata-se do autor de “O Grande Jacques Coeur” (Porto Editora, 2014). Médico e membro da Academia Francesa, Rufiné entusiasta da figura do referido intendente da Casa da Moeda, não poupando nas pesquisas à extensa produção historiográfica sobre o período.
Pese correr rios e rios de tinta sobre o famigerado Jacques Coeur, faltava algo que consolidasse o mito. Para isso, o romance é o meio perfeito, que permite fantasiar sobre a intriga que ligou Coeur à amante do rei Carlos VII, Agnès Sorel, ou ir além do intrincado financiamento da Guerra dos Cem Anos. Rufin adianta-nos, num fantástico posfácio que justifica a obra, que crescer nas proximidades onde Coeur viveu, fez com que a figura do mesmo o inspirasse ao longo da vida, através do portento mítico da sua figura – algo que cresce nas mentalidades e para o qual o rigor da História não tem remédio.
Dificilmente o leitor se iludirá. O que sobra do acutilante e deveras preciso relato histórico é a feição de Rufin, revista naquilo que o próprio mais admira em Coeur. Por isso, mesmo sendo fiel ao que grandes historiadores franceses como Jacques Heers ou Michel Mollat se encarregaram de estudar, a intimidade apresentada sob a forma de livro de memórias carrega, certamente, muita vivência, medos ocultos e a forma de ver o mundo de Rufin. Assim, encarna a palavra de um homem morto, como se a palavra tivesse corpo, caso contrário “O Grande Jacques Coeur” era mais insípido que uma refeição própria para hipertensos. A voz literária dos personagens é, paradoxalmente, o engenho de crença de uma versão imaginada do passado, assim como é inegável que lemos o nosso tempo.
Tratando-se de um romance histórico, é normal que o autor volta e meia atice a trama, acrescente uma pimenta e tome as liberdades a que tem direito. Como é de esperar, há liberdades destas que resultam melhor que outras, personagens de maior ou menor profundidade, algumas curiosidades para satisfazer o virtuosismo intelectual de Rufin, enfim, aspectos minimizados pela fascinante trama de um homo politicus e respectivos jogos de poder. Mas fica-nos mais os pormenores descritivos, por exemplo, a visão onírica de Damasco pela voz do viajado burguês, romanceada com mestria, prova que a virtude da obra está na saudade do tempo e espaço nunca vivido.
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