Há coisa de um ano teve início, nas redes sociais, um daqueles fenómenos atravessados por uma dose bem servida de parvoíce, que pretendia pôr toda a gente a deitar um balde de água fria sobre a cabeça sob pena de, caso o repto fosse recusado, ter de pagar um jantar à moda antiga a uma cambada de gente.
Recentemente a corrente desembocou em outras águas e, depois dos apelos à publicação de fotos infantis – teme-se agora que a coisa possa descambar para a área do duche -, abriu-se espaço para a publicação de listas marítimas mais interessantes, como é o caso das rodelas sonoras e dos livros que mais marcaram a existência de cada um. Neste último campo, para lá dos clássicos como “Crime e Castigo”, “Os Maias”, “O Senhor dos Anéis” ou “Moby Dick”, há um outro título mais recente que promete fazer parte de muito boa lista: “O Pintassilgo“, saído da imaginação e, mais provavelmente, das entranhas de Donna Tartt.
Estamos na cidade de Amesterdão, num quarto cercado por jornais e habitado por Theo Decker que, pela primeira vez em anos, sonha com a mãe. A partir dessa recordação, que esconde em si mesma a ideia de um crime, viajamos até ao despontar da adolescência de Theo, quando este contava treze primaveras e vivia com a mãe na cidade de Nova Iorque.
Numa certa tarde, quando visitavam o Metropolitan museum of Art antes de uma reunião na escola de Theo, dá-se uma gigantesca explosão que tira a vida à sua mãe, sendo Theo um dos poucos sobreviventes. Abandonado pelo pai, será levado para casa de um amigo abastado, onde terá de se adaptar a uma nova e estranha vida que, desde muito cedo, vai ter por companhia a estrela da morte.
No museu, enquanto despertava de um pesadelo com a forma de sonho, Theo cumpre o último desejo de um moribundo, que lhe pede para levar consigo uma pequena e misteriosa pintura de um pintassilgo, pedindo-lhe, já num avançado estado de delírio, que vá até à Hobart & Blackwell, onde deverá tocar a uma campainha verde.
Esse quadro, ao mesmo tempo que se torna o segredo de uma vida, será também o último elo de ligação com a sua mãe e de todo o mundo que esta lhe legou, feito de muita sensibilidade e, sobretudo, de emoção.
Quando Theo pensava ter encontrado uma família adoptiva, assim como um trabalho no mundo da restauração de antiguidades, o pai regressa do nada acompanhado de Xandra, uma jovem com muito corpo e pouco cérebro, levando Theo para Las Vegas onde irá conhecer, de muito perto, o mundo do crime organizado; mas, também, Boris, o amigo e companheiro de uma vida, para o bem e para o mal.
Donna Tartt escreveu, à terceira tentativa, o seu livro mais assombroso até à data: uma ode à vida e um quase triunfo sobre a morte, um tratado sobre o amor e a perda, um elogio à capacidade humana de se reinventar e prosseguir caminho, mesmo sabendo que o destino final, qualquer que seja a rota traçada, será o mesmo para qualquer um de nós.
Um livro magnífico onde cabem, lado a lado, Thoreaux e Whitman, rap e música clássica, Duran Duran e Boy George, bem como uma análise à pintura do século XVII feita de naturezas mortas e muita obscuridade. E que, operando um tour de force, oferece um final vertiginoso, capaz de fazer com que até o mais deprimido dos seres consiga vislumbrar um arco-íris existencial.
Dizer que este é o romance do ano é dizer muito pouco. Chamem-lhe, antes, um dos melhores livros de sempre. O Pullitzer ficou mais do que bem entregue.
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