“São raros os escritores que, em qualquer momento da sua vida e qualquer que seja a sua idade, se expõem ao leitor: Homero, Shakespeare, Goethe, Balzac, Tolstoi. Mas há outros cuja importância só se revela plenamente num determinado momento. Montaigne é um deles.”
É desta forma elogiosa que Stefan Zweig, escritor que já dedicou biografias a muito boa gente, começa o seu pequeno livro intitulado “Montaigne” (Assírio & Alvim, 2016), alguém que, segundo ele, foi sempre fiel ao seu eu mais profundo, mantendo “imaculada a sua independência espiritual e moral” numa época que não foi fácil, construída num cenário de guerra, violência e tirania das ideologias.
Para Zweig, a questão central da obra e vida de Montaigne foi apenas uma: como preservar o eu mais profundo da minha alma, aquilo que Goethe tão bem definiu como a “cidadela”. Não se pense, porém, que isto de encontrar o eu interior está ao alcance de todos. Senão vejamos.
Montaigne herdou do pai, um muito rico armador e negociante de peixe, o título aristocrático e o castelo que o pai deste havia comprado, deixando para trás o apelido de Eyquem e passando a ser conhecido pelo mais imperial Montaigne.
A infância de Montaigne esteve algures entre o regime militar e o mimo incomensurável. Desde sempre ligado ao povo, o pai começou por lhe dar uma educação espartana, sendo criado num meio plebeu e aprendendo o latim como língua mãe. Se é verdade que aos seis anos sabia falar a língua na perfeição, do francês não pescava uma única palavra. A partir daqui entramos no território do mimo e do desprendimento. Só para ficarem com uma ideia, o pequeno Montaigne era acordado todos os dias ao som de música ao vivo, para não lhe perturbar o sono e o acordar natural, passando a conhecer um ensino “que não proíbe nada ao aluno e deixa o caminho livre a todas as suas inclinações.” Mais tarde, é o próprio Montaigne a considerar-se sortudo por, com toda esta educação mimosa e desregrada, se ter tornado um “homem honesto“.
Passou pelo Colégio de Bordéus entre os 6 e os 13 anos, onde cedeu ao encantamento da leitura livre, algo que o acompanhou para sempre. Mais tarde acabou por estudar Direito e, aos 20, terminou definitivamente a sua instrução, tornando-se o seu próprio mestre e adoptando para sempre este lema de vida: amar a vida e amar-se a si mesmo.
Montaigne desejava poder administrar os seus bens como o fazia com a política e tudo o resto – ocasionalmente -, apenas quando sentisse prazer e sem entrar em grandes comprometimentos. Aos 38 anos acabou por se afastar de tudo, vivendo durante dez anos confinado a uma torre onde aproveitou para pôr as leituras em dia e começar a sua vida de escritor, ainda que não se considerasse como tal: “Sou tudo menos um escritor, sou um senhor que não sabe o que fazer do seu tempo e que,por essa razão, anota, por vezes, algumas reflexões informais“. Reflexões, essas, que resultaram nos seus muito apreciados Ensaios, que ele próprio mandou publicar em Bordéus.
Fantástica foi a sua justificação para esta década de ociosidade e afastamento: “Tenho um coração terno que facilmente se preocupa“. Ele que, segundo rezam as crónicas, tinha da Mulher a ideia de um ser que não devia ser levando com grande consideração – não há uma linha nos seus escritos dedicada quer à mãe, quer à mulher.
Após esta década de reclusão decide partir numa viagem que, novamente, o afastará da família – e de quase tudo – durante dois anos. O fim? Encontrar-se a si mesmo. Aos 50, será o mundo que o rejeitou que irá exigir o seu regresso à política, fazendo dele o presidente da câmara de Bordéus e um dos principais conselheiros do Rei.
Nesta pequena mas sumarenta biografia, Stefan Zweig faz um relato preciso, cirúrgico e apaixonado de Montaigne, com quem partilharia algumas obsessões – tais como a liberdade individual ou a santidade do indivíduo. E, se podemos afirmar que Montaigne terá descoberto o seu eu interior – que atinge a universalidade -, também não será errado dizer isto em relação à busca da individualidade tal como Montaigne a tomou em braços: isto não é para quem quer, é para quem pode.
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