Continua em bom ritmo a publicação da obra do mestre Jorge Luis Borges pela Quetzal, desta vez com um livro que está entre o olhar terreno e muito clínico de Shakespeare e o magnífico Inferno desenhado por Dante: “A Memória de Shakespeare e Nove Ensaios Dantescos” (Quetzal, 2016).
Para além do conto que dá título à primeira parte do livro, há ainda outros três de ADN fantástico. Contos que formariam, com outros ainda por escrever, um novo livro de contos, que ficou inacabado com a morte do autor argentino em 1986.
“25 de Agosto de 1983” traz-nos um duplo de Borges: “Sob a luz impiedosa, reconheci-me.” Como em muitos contos do argentino, navegamos no terreno do enigma, dos espelhos, em páginas onde há um prenúncio de suicídio ou morte. E onde, a certa altura, se lê esta maravilha: “Não te apercebes de que o fundamental é averiguar se há um único homem a sonhar ou dois que sonham um com o outro.”
“Tigres azuis” conta a história de um homem que quer alcançar o (aparentemente) impossível: encontrar um tigre azul. Nele, Borges parte da religião e das crenças para formular uma máxima universal anti-materialista: “Aquele que não deu tudo não deu nada.”
“A rosa de Paracelso” é um conto sobre a fé, a crença e, também, sobre as primeiras impressões. Na sua oficina, Paracelso pede a Deus que lhe envie um discípulo, que acaba de chegar depois de uma caminhada de 3 dias e 3 noites, trazendo consigo moedas de ouro e uma inquietante rosa. E que pede a Paracelso um gesto que prove a veracidade do mito que corre o mundo inteiro: que Paracelso pode queimar uma rosa e, logo de seguida, fazê-la renascer das cinzas.
“A memória de Shakespeare” começa, desde logo, com elogios a Goethe, às Eddas e aos Nibelungos, mas aponta desde logo o caminho: “Shakespeare foi o meu destino.” O narrador é Herman Soergel, cuja vida muda após conhecer Daniel Thorpe, segundo ele um homem de uma “notória infelicidade“. A partir da parábola de um anel que permitia ouvir e compreender os pássaros, Thorpe oferece a Herman a possibilidade de ficar com “a memória de Shakespeare desde os dias mais pueris e antigos até aos do princípio de Abril de 1616.” Há, porém, um senão: “O possuidor tem de o oferecer em voz alta e o outro tem de o aceitar. Aquele que o dá perde-o para sempre.” Uma vez mais, Borges oferece uma frase fantástica sobre aquilo que é o acto de recordar: “A memória do homem não é uma soma; é uma desordem de possibilidades indefinidas.”
Já em Nove Ensaios Dantescos, Borges deixou-se levar por uma paixão antiga. Segundo ele, o “Inferno” de Dante é um livro que tem o mundo inteiro lá dentro, e estes nove ensaios centram-se nessa viagem muito lúcida e reflexiva que vai do percurso terreno ao que está para lá da morte.
Publicados originalmente em 1982, estes nove ensaios são verdadeiras pinturas, que refazem numa tela literária alguns dos pormenores mais simbólicos da incrível viagem organizada por Dante, desde “O falso problema de Ugolino” ao episódio d'”O Simurgh e a Águia”, passando ainda por “O último sorriso de Beatriz”. Nove contos onde há menos espaço para o fantástico mas onde se abre o terreno à erudição.
Sem Comentários