Ficou conhecido como o “boom latino-americano”: no final da década de 60, o mundo da cultura ocidental apaixonou-se pela cena literária da América Latina. A faísca desse fulgurante entusiasmo foi a publicação do livro “Cem Anos de Solidão”, obra-prima indiscutível do escritor colombiano Gabriel Garcia Marquéz. No entanto, Garcia Marquéz foi apenas a face mais visível de um movimento literário pleno de vitalidade, que atravessou a segunda metade do século XX.
É a geometria pessoal deste movimento que o livro de António Mega Ferreira, “Viagens à Ficção Hispano-Americana” (Arranha-Céus, 2015) procura dar a conhecer – a intenção foi abordar o fenómeno mais numa perspectiva pessoal do que com qualquer pretensão académica. A obra teve a sua génese num conjunto de palestras proferidas por Mega Ferreira em Lisboa, integradas na programação de âmbito cultural do El Corte Inglês.
Vamos à viagem: a deambulação literária divide-se em dez capítulos. Cada um deles visita um escritor, examinando a sua vida e obra de forma integrada e abrangente. Na primeira parte, “Vistas dos Trópicos ao amanhecer”, observamos alguns escritores dos Trópicos, facetas diferentes do chamado “realismo mágico”. Começa-se por Juan Rulfo, pedra angular de todo o movimento – com uma interessante análise do estilo inovador e vanguardista do autor. Volta-se, depois, o olhar para outros vultos, como o já citado Garcia Marquéz, Mario Vargas Llosa ou Alejo Carpentier.
Sendo o “realismo mágico” apenas uma das faces deste movimento, a segunda parte do livro – “As margens do Rio de la plata” – desloca os holofotes para a Argentina e o Uruguai, onde os protagonistas são o genial Jorge Luis Borges, o seu grande amigo Bioy Casares e, também, Júlio Cortázar e Juan Carlos Onetti. Representam, cada um à sua maneira, uma outra vertente literária: são escritores urbanos, eruditos e deliberadamente não-realistas, construtores de universos intelectualmente fascinantes e complexos.
A terceira e última parte, “O último selvagem”, dedica-se a escalpelizar um escritor enigmático e inclassificável: Roberto Bolaño, autor de uma série de perturbantes ficções no virar do século, com livros como “Os Detectives Selvagens” e “2666”.
A prosa de António Mega Ferreira revela uma genuína paixão pelo tema, com atenção ao pormenor. Escreve de uma forma acessível, erudita mas não hermética, e descobre aspectos estimulantes para quem gosta de livros – a obra abre o apetite para a descoberta de muitos dos escritores em questão.
A biografia, o estilo, os efeitos de linguagem e as características pessoais dos autores são matéria para um aturado mapa literário, onde não falta a relação de muitos deles com os seus precursores: todos tinham lido William Faulkner, James Joyce, Kafka e Proust, onde iam buscar as ”feitiçarias da forma na ficção, a sinfonia dos pontos de vista, ambiguidades, matizes, tonalidades e perspectivas”, como admite Vargas Llosa.
É, também, analisada a relação do movimento literário com a revolução cubana de Fidel Castro. A utopia comunista começou por ser uma fonte de esperança para a primeira geração do boom, mas daria lentamente lugar ao desencanto e à dor de muitos escritores, por terem feito fé numa revolução traída pelos próprios mentores.
“Viagens à Ficção Hispano-americana” é um compêndio indispensável para se perceber a importância deste movimento no panorama literário mundial. Menção especial para o grafismo apelativo da capa, um padrão de malaguetas, espelho de um estilo literário de imaginação tórrida e policromática.
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