J. Rentes de Carvalho: um português na Holanda ou um holandês em Portugal? Acima de tudo um homem sem papas na língua, que não precisa de agradar quer a portugueses quer a holandeses: um senhor de um pensamento claro e cortante.
Segundo o próprio, perdeu precocemente a ingenuidade por ter começado a ler muito cedo, e a consciência social, traço inconfundível do seu universo, também cedo surgiu, adquirida no lugar onde viveu – o Monte dos Judeus em Vila Nova de Gaia – rodeado de ricos, modestos, prostitutas, embarcadiços e pescadores, como se pode ler na excelente entrevista de João Céu e Silva ao DN.
“O Meças” (Quetzal, 2016), a sua mais recente obra, não nos poupa à violência e à brutalidade do homem que é António Roque. Desde os episódios em que regressamos ao seu passado, até ao aos acontecimentos do momento presente, descobre-se um denominador comum: o ódio e o desprezo pelos outros – mas, também, um sofrimento e um tormento devastadores.
Nada o pacifica, nada dá cor à sua existência, que nunca deixa de ser uma tempestade feroz, devastadora e sem misericórdia. O desprezo pelos outros não discrimina ninguém. É, antes, servido em doses parcelares ao longo da sua vida, seja pelos pais, pela mulher, pelo filho, pela nora ou por quem encontra no seu destino.
Vamos percebendo a origem precoce dos acontecimentos que lhe minaram a vida e acompanhando o desfilar dos seus demónios quando, sem aviso prévio, passamos à narrativa de uma outra personagem, e a surpresa é tão grande como apenas o pode ser a natureza humana. Com este novo narrador é-nos apresentada uma outra vida: desencantada, com demónios de outras cores e feitios.
Através destes dois elementos principais, com vários pontos comuns – como o local de origem ou a história de emigração -, somos levados a ver o mundo com a tal implacável consciência social de Rentes de Carvalho, olhando as diferenças abismais das vidas singulares das pessoas deste nosso país: as desigualdades na partida para o desconhecido, as diferenças no regresso à origem, a submissão aos poderosos, a esperança cega do povo nos projectos megalómanos das gentes excêntricas e aparentemente endinheiradas.
No final, fica a consciência de que, para além das tragédias pessoais que nos foram mostradas, tivemos acesso a um retrato verdadeiramente impiedoso da sociedade portuguesa. Quem se iniciar na leitura de Rentes de Carvalho com este “Meças”, terá a satisfação de ter ainda muito boa obra pela frente.
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