O ano da graça de 2022 apresentou-nos Wolf Manhattan, produtor musical de culto que, nas décadas de 70 e 80, viveu no primeiro andar de uma loja de bairro, bem no centro de Nova Iorque, sustentado por um McJob qualquer. Colhendo inspiração na vasta colecção de discos do tio, Wolf resolveu pegar numa decrépita guitarra dos anos 50 e num gravador de 4 pistas para gravar alguns temas. Resultado? Um disco homónimo com 13 canções originais para espantar a solidão.
Aqui entre nós, que ninguém nos ouve, Wolf Manhattan é uma ficção criada pelo músico João Vieira, que conhecemos de projectos como os X-Wife, White Haus e Dj Kitten. Fast forward para 15 de Abril de 2024, o dia em que Vieira oferece um segundo capítulo à discografia do lobo: “Real Life is Overrated” (João Vieira, 2024). Tal como o álbum de estreia, é composto por 13 temas. Vamos olhar para cada um deles com atenção:
Consequences: «Rádio Wolf Manhattan em acção», ouvimos. Estamos à beira-mar, com areia entre os dedos, a ouvir este tema construído com apenas alguns acordes acústicos — uma canção de travo nostálgico, bem servida pelo timbre particular do vocalista. Essa é que é essa: as consequências das nossas acções são, por vezes, monstros.
Feelings on Ice: Uma pérola rock que consegue pôr-nos a cantarolar o refrão sem o mínimo esforço. Wolf canaliza o Lou Reed da era «Transformer» com uma descarga de boa onda que inclui um solo de guitarra de arestas afiadas. Foi um dos pontos altos do concerto de 4 de Maio no CCB.
Can’t Always Win: Entramos no terreno das baladas, num tema mais produzido. Este segundo álbum não parece tão preocupado com restrições de instrumentos e com a cartilha lo-fi, e esta música é disso exemplo. Se não podes juntar-te a eles, vence-os.
Breathe: Primeiro dueto do disco, com a finlandesa Jenna Marie Laine. Um sintetizador de feira da ladra brinca em volta das vozes. É difícil não abanar o corpo ao som desta melodia. O tom lúdico ameniza uma letra que fala de ansiedade e pânico social — tema para cantarolar a caminho de um funeral.
Girl in a Peugeot: Esta é para tocar no descapotável, em direcção à praia. Surf-rock e harmonias à la Beach Boys, com direito a palminhas e tudo. Sobre o trânsito e a impossibilidade de contacto com a rapariga do carro ao lado.
In My Arms: Indie até à medula. Guitarra e percussão minimalistas, numa canção marcada por uma estrutura dinâmica, com paragens e arranques, envolvida num zunido de feedback.
Life on My Own: O OVNI do álbum: uma fantasia electrónica que vai buscar tanto aos Kraftwerk quanto ao Super Mario Bros. Um interlúdio completamente alucinado (e completamente delicioso).
Girl in Financial Crisis: Um dos méritos de João Vieira reside na escrita de canções afiadas e orelhudas, aparentemente directas, mas com alguma complexidade escondida. É o caso desta curta canção (apenas 1:44), cheia de cortes, texturas, percussões e vocalizações variadas. Tema: o drama da carteira vazia.
Song About Death: Wolf enfrenta a sua mortalidade. Resultado? Uma canção alegre sobre a morte, assombrada pelos fantasmas da mediocridade humana. Nas palavras de Mae West, «só se vive uma vez, mas, se o fizeres como deve ser, uma vez chega».
Wolf Man: Mais uma desbunda — puro rock’n’roll em alta velocidade, com um travo punk e alguns uivos à mistura. Wolf regressa dos mortos para nos assombrar.
Smoke Machine: O vocalista ganha a companhia da voz quente de Monday, ou seja, Catarina Falcão, autora de «Underwater, Feels Like Eternity», disco lançado em Maio deste ano. A canção cheira a pó do deserto e poderia ser uma Murder Ballad de Nick Cave ou um dueto entre Lee Hazlewood e Nancy Sinatra.
Dreaming: Outro rebuçado pop de fino recorte. De passada forte e sorriso na cara, é uma canção que pede uma bebida fresca numa esplanada, sob o sol da primavera.
Pictures of You: Novo dueto com Monday, é um passeio de fim de tarde pelas margens do Sena, qual Serge Gainsbourg e Jane Birkin conversando e partilhando um cigarro. O tema fecha o disco com chave de ouro.
Com pouco mais de meia hora, “Real Life is Overrated” revela o prazer do analógico sem recusar um som mais lapidado em certos momentos. A mistura resulta num conjunto imprevisível, que nos consegue cativar do princípio ao fim. Talvez a vida real seja mesmo sobrevalorizada: vale bem a pena descobrir o universo imaginário de Wolf Manhattan.
Sem Comentários