Momento marcante no calendário de qualquer melómano é, sem sombra de dúvida, o início de Outubro, que marca o arranque do OUT.FEST. O festival que este ano se realiza entre os dias 3 e 5 dá-nos a conhecer propostas reveladoras do tempo que ainda vamos considerando como nosso, em que a cada escolha associamos sagacidade e sentido crítico e que, no seu todo, conformam um espaço/tempo de procura, de crítica. Uma coerência programática que se vai mantendo ao longo dos anos e que só é possível por existir uma equipa que vai trabalhando estas questões dia a dia. Falámos com Vitor Lopes, um dos programadores do Festival.
(A divisão da entrevista esbarra no misticismo do três, neste caso Barreiro/Out.Fest/Vítor, simplesmente por facilidade de leitura. Isto porque, com a paixão com que o Vítor fala, qualquer estrutura é para ser desmontada, imaginada e reconstruída num corpo maior.)
OUTFEST 2019 & O BARREIRO
Assumidamente arrevesado não gostaria de começar a nossa conversa sem fazer referência ao Barreiro, nomeadamente à Camerata Musical do Barreiro e ao Viegas (dois nomes da cidade presentes na edição deste ano). É um sintoma muito evidente da vitalidade da música nesta cidade? De que forma se manifesta essa vitalidade?
Essa vitalidade manifesta-se de muitas formas, umas mais evidentes que outras, e em circuitos paralelos que raramente se cruzam. A Camerata é uma orquestra de música de câmera com um lado formativo muito importante a nível local, com músicos muito experientes e outros muito novos. Enche-nos de orgulho e expectativas que tenham aceite sem hesitar um desafio destes. Viegas = maior respect.
Como pode, por um lado, o OUT.FEST e, por outro, uma das associações que o organiza, a Outra, servir de ponto de articulação entre estas diferentes dinâmicas e manifestações?
Fazendo justamente coisas no género destas, que faz da forma como faz. Haverão outras porventura, como é exemplo uma boa parte da nossa programação de concertos, workshops. etc., ao longo do ano.
Em 2019 assistimos, pelas mais variadas razões, ao desaparecimento, desejamos que temporário, de diversos festivais – Jardins Efémeros, Milhões de Festa, Rescaldo e o Barreiro Rocks. Todos eles com uma carga autoral bastante forte e a maior parte deles com apoio camarário. Até que ponto é importante esse apoio e como se pode fazer a articulação com o poder municipal? Como é com a Outra e com o OUT.FEST?
No meu livro, um bom festival de música tem de ser feito pelos motivos certos, e o dinheiro, o lucro por si só, não é um motivo suficientemente certo. Isso geralmente dá em coisas sem grande carácter distintivo onde, desde que se consiga o financiamento suficiente (patrocínios, dinheiros públicos, bilhetes, copos) para no fim dar saldo positivo, pouco importa o sítio onde são feitas. Agora tu estás a falar de festivais cuja identidade está intimamente ligada ao local onde são feitos, porque são feitos pelas pessoas dos sítios e nos sítios. Pela quantidade de eventos praticamente iguais por esse país fora, dá para ver que é grande a tentação de ter o que já se sabe que vai dar certo, porque toda a gente em todo o lado tem e em todo o lado vai dando certo. E no fundo não há mal nisso. Mas é preciso haver um equilíbrio, um bocadinho de visão e um bocadinho de carinho pelo que é dos nossos. Falando de nós por cá. É justo dizer que sem a Câmara Municipal do Barreiro (CMB) provavelmente não haveria OUT.FEST e que, no dia em que a CMB decidir não apoiar, o festival simplesmente baza ou acaba. Também é justo dizer que tem sido todo um caminho para sabermos o que é, e sobretudo o que pode ser, o OUT.FEST – e como é que se dialoga com uma câmara sobre estas coisas. Também é justo dizer que com um bocadinho mais de carinho, cojones e confiança (os três cês!) no nosso trabalho por parte da autarquia, o festival estaria bem mais perto de ser tudo aquilo que pode ser, e que na medida em que um festival de música pode contribuir para a causa maior, a cidade estaria mais perto de ser tudo aquilo que pode ser.
O Festival é sempre oportunidade única para se conhecerem novos espaços na cidade. Este ano o Moinho e o Espaço A4. Gostava de te perguntar, por um lado, se não vos apeteceu organizar concertos na Quinta da Braamcamp? 😉 E, por outro, o que podemos esperar destes novos espaços e que critérios presidem à eleição de cada um?
Pois, o destino da Braamcamp é um dos assuntos quentes do momento aqui na cidade, e é demasiado sério e complexo para explicar aqui em duas linhas. Mas se queres saber, não acho nada óbvio que apenas a venda seja a solução – e lamento a forma como este executivo tem lidado com o assunto que é do tipo “bora dialogar mas não há nada para falar porque vai ser assim e pronto”. Ao mesmo tempo é só pena, triste e desencorajador que em 2019 não dê para falar de assuntos sérios sem que rapidamente a conversa se transforme numa discussão de bola. O Moinho de Maré Pequeno também não é assunto pacífico localmente. Apesar de ainda ser preciso provar que o relevo museológico é suficiente para se poder dizer que valeu a pena a obra ser feita como foi feita, é um espaço incrível para concertos. O A4 é um espaço incrível para festas que fica na antiga zona industrial. É onde tocaram o T Gast e o Lycox o ano passado e onde se vão destilar glória e suor na festa de encerramento da edição deste ano.
Um dos espaços mais emblemáticos é a associação Os Penicheiros, de certa maneira resgatado o ano passado e conferindo, à falta de melhor expressão, um tom mais de Festival ao OUTFEST. É vontade em explorar o conceito de que em registo de festa se falam de coisas sérias? (lembro-me de Linn da Quebrada o ano passado, por exemplo).
Raros foram os anos em que não tenha havido esse tom de festival – leia-se pelo menos uma noite numa sala grande como os Penicheiros, Franceses, Ferroviários, ADAO com o povo de pé. Por outro lado, não somos abastados ao ponto de todo os anos nos sentarmos a desenhar o cartaz ideal segundo grandes pergaminhos conceptuais e mandar vir os artistas eleitos e está feito. Isto para dizer que surgindo, como surgiu, a oportunidade de trazer ao Barreiro a Linn da Quebrada, que é uma grande artista, com uma mensagem importantíssima no momento mais importante, que é sempre o agora, não dava para não a trazer.
OUTFEST 2019
Devemos prestar sempre muita atenção ao concerto de abertura, sobretudo depois do exercício do Jonathan Uliel Saldanha há dois anos. Este ano o convidado é o Gabriel Ferrandini com a Camerata Musical do Barreiro, o que podemos esperar deste exercício? O que estava nas vossas cabeças quando endereçaram o convite?
O que estava nas nossas cabeças foi dizer ao Gabriel para pensar no que queria fazer que ainda não tivesse feito e que o viesse cá fazê-lo. A partir do momento em que o assunto metia cordas, sugerimos que fosse com este grupo local. É uma forma bonita de incluir o tecido artístico local no festival. Mais fixe que lhes comissariar uma peça de um tipo morto é inclui-los na criação e apresentação de uma peça de um tipo bem vivo. A julgar pelo que ouvi no ensaio de ontem, e botando na equação o talento dos envolvidos e o sítio onde vai ser, acho que vai ser do bufo!
Há um contingente do Porto muito forte (Bezbog + Calhau + Angélica Salvi). Pura coincidência? Uma tentativa de nos aproximar a uma cidade fértil em propostas estimulantes e que “incorporam” uma componente performativa e visual muito forte?
Com certeza que estamos atentos ao que se passa no Porto, e é com muito gosto que finalmente teremos os Bezbog, cuja música vimos seguindo há um par de anos, no OUT.FEST. E que acolhemos pela terceira vez os Calhau! E que acolhemos a estreia da Angélica Salvi!
Já são muitos anos e há sempre uma ausência ou alguma coisa que nos faz falta. Haverá sempre uma queixa :-). Mas este ano, ao contrário de anos anteriores, não vi no programa um lado mais relacionado com conversas, workshops. É só uma questão do momento? Os resultados que retiraram das experiências anteriores não eram aqueles que estavam à espera?
Nós somos os primeiros a ver as falhas, as qualidades, o potencial por realizar. Montar este festival é um exercício que, ao mesmo tempo que dá uma pica do caraças, também tem o seu quê de frustrante, como nunca ver o orçamento ao nível do potencial do festival. Faltam conversas e workshops, é certo. Falta muita coisa. É preciso fazer escolhas. Todos os anos procuramos botar uma parte da energia e dos euros no que nos parece que mais ajuda a fazer o festival crescer, para que no ano seguinte haja mais dinheiro para se fazer todas as coisas que faltam fazer.
E reservas por antecipação. Mesmo reconhecendo a forte ligação da Red Bull à música, há sempre a legítima esperança que estas marcas não entrem em festivais desta natureza. Como surgiu esta colaboração? O que se pode esperar do exercício por eles patrocinado? Foram vocês que sugeriram os nomes portugueses?
A tua reserva é uma reserva antiga nossa também. Essa coisa toda de se estás ou não a vender a alma ao diabo quando te associas a marcas. Às vezes tens de fazer as coisas para saber como é que elas realmente são e nós, se calhar, passámos demasiado tempo a falar sem saber realmente como era fazer. A Red Bull tem-se associado e viabilizado um montão de coisas relacionadas com música, algumas bem porreiras, diga-se, por esse mundo fora. Esta é uma delas e é preciso dizer que sem o patrocínio ela não iria acontecer. Óbvio que a ideia é toda ela nossa e, se estás a vê-la para acontecer, é porque o pessoal da Red Bull, que não é parvo, também gramou.
Assumidamente egoísta a escolha, mas um dos trabalhos de que mais gostei o ano passado foi o da Kali Malone. E a Kali Malone, juntamente com a Sarah Davachi ou a Holly Herndon, para citar pouquíssimos exemplos e muito recentes, são mulheres, com um background académico fortíssimo e que esbatem os limites entre a teoria e a prática. Como vês a articulação entre a teoria e a prática, ou seja há necessidade de teorizar sobre a prática, por um lado, e por outro “materializar” a teoria na prática? Como vês uma tendência cada vez maior das mulheres assumirem projectos marcadamente autorais? Como lhes poderemos dar mais visibilidade e constância?
Uma prova do mal que os mundinhos académicos fazem a quem lá mete o pé é justamente ainda tratarmos este pessoal que por lá passa, mas que por um motivo ou por outro não fica ali enredado a proteger a música com uma redoma, como se fossem uns heróis. Mas siga não medir o valor e o interesse das coisas por aí. Teoria e prática é tudo bom e, em princípio, todas as combinações são caminho viável para chegar a sítios fixes. Vai sempre haver o pessoal conservador da redoma e vai sempre haver o pessoal que quer partir a redoma à mocada.
Sobre as mulheres na música: é inevitável que as coisas mudem, mas temos de ser nós todos a dirigir a mudança na direcção certa, não é? O normal tem de ser que ninguém fique de fora por motivos que não tenham que ver com mérito, talento, ter cenas importantes para dizer… Venham mais mulheres, gays, trans, pessoal não binário, pretos e ciganos. É provável que o mundo nunca venha a ser um sitio inteiramente justo, mas é estúpido que não se vão corrigindo e eliminando as opressões e injustiças à medida que as vamos reconhecendo.
O OUTFEST & O BARREIRO & O VITOR
Um dos nomes, pela carga histórica, que mais vontade terei em ver é Ilpo Väisänen (elemento dos míticos Panasonic/Pan Sonic). O que representa para ti este concerto e a obra dos Panasonic/Pan Sonic?
Somos dois! Pan Sonic é, era, É! grande banda, e infelizmente acabou antes de os conseguirmos cá trazer. O Mika Vainio, que era a outra metade dos Pan Sonic, idem. Era uma questão de tempo até cá vir o Ilpo e finalmente vai acontecer. Vai ser incrível.
Como surgiu a tua relação com a música? Através da guitarra do pai ou da cassete do primo?
Já devo ter nascido com alguma espécie de inclinação para a coisa mas sim os discos do pai e da mãe – a nona sinfonia do outro chefe, o Bolero, Elvis, Pink Floyd, o Mirage do Klaus Schulze, Kraftwerk, emissões enigmáticas de onda curta, a banda sonora do Rocky IV – a tocarem dia e noite quando era mesmo puto. Depois os KLF e os programas de música de dança na rádio tuga, os píncaros do fenómeno do death metal, as caldeiradas de finais dos 90s e finalmente, aleluia, a Internet para mitigar a pobreza e a exclusão.
Que papel desempenhas na Outra e no OUT.FEST?
Ajudei a fundar ambas as estruturas em 2009 e 2004 respectivamente, e cá ando desde então co-dirigindo programando produzindo.
Quais foram para ti os momentos mais marcantes no OUT.FEST ao longo destes anos?
O que é mesmo marcante é o caminho que tem sido fazer parte disto tudo. A sorte e a bênção que é um gajo poder convidar pessoal que faz a melhor e mais importante música dos últimos 50 e tal anos para tocar no Barreiro. Repara, no Barreiro!
E o que ainda te falta concretizar?
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