No início de 2015 o arquitecto Salvador Menezes tirou uma semana e meia de férias. Procurava evadir-se da rotina do dia-a-dia, e decidiu cumprir nessa pausa um horário “laboral” dedicado exclusivamente à sua paixão – a música. Da experiência nasceu a semente para “Novas Ocupações”, o primeiro álbum a solo do também baixista dos You Can’t Win Charlie Brown, que assume aqui o alter-ego de Tipo.
Editado a 16 de Março, o disco apresenta uma colecção de 10 canções muito pessoais para Salvador. Senão veja-se: “Novos Ofícios” inclui um sample do batimento cardíaco da sua filha, gravado no consultório do médico; “Querela das Vizinhas” parte de uma gravação de um bate-boca de vão de escada no seu prédio, e “Confesso” fala da barragem de influências que habitam a música do Tipo, que vão de Gainsbourg a David Bowie.
Comecemos pelo princípio: o disco abre com “Acção-Reacção”, a primeira música a ser composta. É um objecto estranho, experimental, povoado de silêncios e partículas digitais – faz lembrar o lado mais electrónico de Thom Yorke nos seus trabalhos a solo. Passa por vários andamentos, desde a solenidade de um sintetizador em modo “orgão de Igreja” até ao final contaminado por ritmos africanos. Vale a pena espreitar o inventivo videoclip, onde Tipo, em plano fixo, serve de tela para pinceladas de luz e cor, combinadas com um gimmick engraçado com a barba e o cabelo – só vendo.
“Confesso” é um dos melhores temas, tanto pela leveza pop, que vai colher assumidamente a “Band On The Run” de Paul McCartney, como pelo comentário pertinente a um assunto na ordem do dia: a diferença entre plágio e influência. “Fui ouvir as referências para memória”, canta Salvador, “não pensei fazer igual”.
A elegante balada electrónica “Desfecho” exibe uma economia de meios, pontuada por sintetizadores circunspectos e harmonias à Beach Boys, oferecendo-nos mais um bom momento pop. Viajamos então até à “Jugoslávia”, tema mais luminoso e vibrante, talvez um dos mais imediatos e mais próximos do registo rock dos You Can’t Win, Charlie Brown – embora o facto de Salvador cantar em português lhe dê logo outra roupagem.
A produção meticulosa deste disco ficou a cargo do ubíquo Benjamim, em conjunto com Afonso Cabral, parceiro nos YCWCB, e o próprio Salvador. O universo sonoro do Tipo é mais obscuro e mais experimentalista que o dos YCWCB, banda que ostenta traços mais de acordo com a cartilha indie-rock.
Ainda assim, uma das marcas registadas do colectivo marca presença: as harmonias vocais. São elas as protagonistas no delicado tema-título “Novos Ofícios”, a tal balada espacial que conta com o coração da filha de Salvador a marcar o ritmo – dir-se-ia que, nem de propósito, esta música representa o coração do álbum, o seu centro de gravidade. O tom mantém-se em “Querela das Vizinhas”, tema que, a meio, ganha uma dinâmica mais arrebatada.
“Fim do Dia” progride por meio de ritmos quebrados e modulações africanas, com compassos engasgados, arranques e recuos. Por cima paira a voz de Tipo, qual astronauta, flutuando sobre efeitos e overdubs.
Passamos à invulgar “Auto-comiseração de um Desempregado”, que começa com uma tensão latente – a voz distorcida em coros digitalizados e robóticos, pontuados por palmas e sintetizadores em eco permanente, como uma manifestação auditiva das tensões do mercado de trabalho.
O álbum encerra com “Artigo Indefinido”, vários riffs descarnados aliados ao ritmo das palmas e a uma batida crua – termina com o som familiar de alguém a subir as escadas, a abrir a porta e a entrar em casa.
Disco curioso, “Novos Ofícios” está polvilhado de boas ideias, pensado com pormenor e sem medo de arriscar. No bom momento que atravessa a música portuguesa, é certo que há aqui mais um Tipo a ter em conta.
Sem Comentários