Longe vão os tempos em que, depois de um pagamento por transferência bancária, recebíamos em casa as encomendas da agora murcha Flor Caveira. Em capas de uma cartolina de qualidade mínima, chegavam os CD-R da Sony escritos à mão e em tinta preta, isto se não se apresentassem como vieram ao mundo digital, acabando por se misturar com aqueles com que, lá por casa, iam sendo gravados com os saques trazidos de intensas sessões de pirataria.
Eram, muitos deles, discos gravados entre almoços com equipamento amador, com ecos de igreja, muita alma e bloopers para dar e vender. Foi nessa flor que se formou Samuel Úria, provavelmente o maior escritor de canções da Lusitânia, rei de enigmas líricos, mestre das trocas gramaticais, artífice de canções que viraram hinos com muita poesia e religiosidade lá dentro.
Hoje em dia, reformadas as Velhas Glórias e seco o caudal dos Ninivitas, Samuel Úria vai saltando de pico de forma para pico de forma – o recente EP “Marcha Atroz” é prova disso” -, com instrumentalizações que transformam muitas das suas canções em sermões tão bons que até os ateus mais ateus com eles se deliciam.
Decidido a mergulhar no ambiente dos clubes dos quais se afastou na vertigem do mais do que merecido estrelato, aquele que em muito boa biografia se define como “meio homem meio gospel, mãos de fado e pés de roque enrole”, chegou-se à frente com cinco concertos distribuídos entre Lisboa e Porto, respectivamente no Musicbox (3, 4 e 5 Outubro) e nos Maus Hábitos (9 e 10 Outubro). Concertos onde se prometia uma mescla de meteoritos punk, aliada ao lado mais baladeiro e orquestral dos tempos mais recentes – ou, como o próprio diria na noite de 3 de Outubro, “canções antigas e rockeiras com outras que aqueles que me conhecem há menos tempo cantam e descansam“.
“Como é, minha gente? Nós somos os Samuel Úria“, atira Samuel nos cumprimentos do concerto de arranque da mini tour “Pés de Roque Enrole”, começando a celebração com “uma canção que há quinze anos era a única que toda a gente conhecia. E que agora ninguém conhece”. Trata-se de “A Agenda”, começo nos píncaros da punkalhada, que convida a uma ida à escola dominical sempre que for dia de descanso.
Brincando, disse que aquela era a noite escolhida pelas pessoas mais inteligentes, uma vez que havia a forte possibilidade de não sobrevivência após uma setlist habitada por 18 temas, onde teve como parceiros de palco Jónatas Pires, Miguel Ferreira, António Quintino e Tiago Ramos.
Foi um concerto entre amigos e fãs de longa e média data, e até vimos Lipe subir ao palco para tocar bateria e baixo em três temas ou o Almirante – assim chamado por Úria – ser baptizado de “o meu Priberam preferido“, sendo visível e contagiante a alegria deste reencontro de velhas glórias.
Momentos para mais tarde recordar não faltaram: “Aeromoço”, canção “sobre um grande rocker chamado Bruno Morgado“, vê Jónatas Pires convidar Úria para uma dança de guitarras, que aproveita o balanço para testar uns movimentos (bem) sacados ao Karate Kid; “Repressão” serve de teste ao coro de Santo Amaro do Cais do Sodré, que passaria na tarefa com distinção e direito a diploma; “Grandiloquência do Roque” – reza assim na setlist que nos chegou às mãos em final de festa -, que segundo Úria poderia ter-se chamado “Dr. Bayard” – “Isto é bom para a tosse“, disse -, repõe a punkalhada em níveis mínimos; “Mãos”, “uma boa música para dançar com a querida“, chega em versão baile de finalistas; em “Forças de Bloqueio”, Lipe sobre ao palco e toma conta da bateria, fazendo jus a uma máxima que as Velhas Glórias levavam à letra: “nunca ensaiava“. Lipe que pergunta “quem é que começa?” para divertimento geral, naquela que na discografia de Úria é “uma das raras canções políticas, que não vamos poder cantar no sábado por causa das eleições“; ainda com Lipe seguimos para”Ninivita”, canção de insulto onde todos foram convidados a soltar impropérios dirigidos a pais, mães e vizinhança; chega então “Lenço Enxuto”, “a canção mais punk que já escrevi na minha vida“, cantada em coro de uma ponta à outra e candidatando-se a novo hino nacional; a recta final faz-se com “Fusão”, onde vemos Úria ensaiar uns passos de breakdance, dois géneros de medley compostos por “Não Arrastes o Meu Caixão” vs “Rock Desastre” e “Tapete” vs “Lábios da Mamã” – sortilégios da setlist -, a “Valsa do Afonso”, que Úria disse ter ouvido pela última vez há uma eternidade e cantada então por Vitorino e Sérgio Godinho, e “Teimoso”, que há onze anos atrás havia sido servido em bruto e numa lindíssima versão acústica.
Para o encore ficou reservado um bravo triunvirato: o épico “Barbarella e Barba Rala”, onde Paris se faz de cobertores e de recuos (com)prometedores – “uma canção de despedida“, diz-nos Úria -, “É Preciso Que Eu Diminua”, cantada por todos a plenos pulmões, e “Tigre Dentes de Sabre”, onde se destacou uma bem ritmada secção de palmas popular.
Um concerto bravíssimo, que serviu para, juntamente com Úria, regressar a esse passado do qual nos devemos sentir orgulhosos por ter visto acontecer – ou por poder descobri-lo agora a uma nova luz.
Fotos: Madalena Pintão
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