Folheando os livros para sala de estar tão em voga num dia, como em mega promoção passado dois anos – As 100 Melhores Cidades do Mundo, As 100 Aldeias Mais Típicas, As 100 Ruas Mais Bonitas ou qualquer outro que nos imponha um padrão de gosto e que nos conduz não só aos inevitáveis lugares comuns -, facilmente verificamos que são mais as omissões, por desajustamento da matriz desenhada, do que qualquer ensinamento que possamos retirar deles.
Certa aula, o docente de História do Urbanismo vociferava contra a ausência da Rua do Alecrim num destes livro/catálogo. Segundo o mesmo, a adaptação à cota do terreno, as diferentes apropriações entre o início e o fim da mesma, as relações visuais que se estabelecem com o Tejo e a diversidade arquitetónica, sendo que o projecto de Siza Vieira corresponde ao último preenchimento de um vazio da época pombalina, eram mais do que merecedoras, não só de uma menção como para livro exclusivamente dedicado.
Solidários com esta luta, acrescentamos que durante muitos anos foi lugar de uma das mais interessantes editoras, a Clean Feed, espaço de criação e de encontro para músicos, de Norberto Lobo a Tiago Sousa, de Pedro Sousa a Travassos, de Filipe Felizardo a Gabriel Ferrandini, e que encontravam aí acolhimento para as mais diversas propostas. Um laboratório, na sua verdadeira acepção, espaço de criação, de numerosos concertos, de um sem número de projectos, mais ou menos duradouros, entre os quais o Red Trio, que celebrou, no passado dia 10 de Fevereiro no Teatro Maria Matos, uma década, com uma muito bem conseguida reunião de músicos: Red Trio & Celebration Band.
Deslocamos as coordenadas da Rua do Alecrim, 21A, da Trem Azul, para o eixo Alvalade – Marvila – Chelas e coloquemos o seu epicentro no Maria Matos. Mudança espacio-temporal, mas não na matriz de intricadas inter-relações que se foram estabelecendo entre músicos, editoras, salas de concertos e programadores culturais ao longo destes anos, e que adquirem uma visibilidade crescente a nível internacional. Cumplicidades que atestam a vitalidade da cena jazz e improvisação nacional e de um teatro público municipal, que não só acolheu propostas deste género como foi, muitas vezes, o catalisador para este tipo de criações; no fundo, uma porta aberta para os mais diversos criadores, com uma atenção muito particular para o que de mais interessante e consolidado acontece na cidade e no país e que sente como obrigação, entendida aqui como serviço público, proporcionar todas as condições para a construção de novas matrizes, novas referências, novas lógicas combinatórias.
E, se há trabalho que se manifesta na liberdade dos cruzamentos não delineados, é o Red Trio. Se na estrutura há uma aparente formalidade, um certo classicismo a remeter para os actos de uma peça de teatro ou para os capítulos de um livro, uma vez que há a divisão em 3 Suites, uma por cada músico que o compõe – Rodrigo Pinheiro (Piano – Suite I), Gabriel Ferrandini (Bateria – Suite II), Hernâni Faustino (Contrabaixo – Suite III), cada uma constituiu não só a manifestação da singularidade do projecto como a explanação das peculiaridades de cada um dos músicos integrantes do trio. Um triângulo que assume uma geometria variável, uma metamorfose ambulante que vai absorvendo cada contribuição, sem nunca perder a identidade.
Exercício especulativo quando o tinha de ser, contido quase sempre, mas nunca amarrado, desafiante em muitos momentos, de exímio controle dos tempos e contra tempos. Um ensemble ou máquina em permanente montagem que ora contava com John Butcher, Sei Miguel, Fala Mariam, Mattias Ståhl, Ricardo Jacinto, Carlos Santos ora com Nuno Torres, Ernesto Rodrigues, Luís Vicente, ora com Pedro Sousa, Miguel Mira, Rodrigo Amado, David Maranha, Miguel Abras. Mais do que o relato de cada suite, o que interessa reter de uma noite de quase 3 horas é a capacidade que cada um dos músicos tem para criar uma peça autónoma, mas que só faz sentido integrada no contexto específico da celebração. A voz de Miguel Abras, qual diva na penumbra e arrastada na viela da noite, o piano do Rodrigo Pinheiro, muitas vezes puxado pelas cordas, os sibilinos acordes de Sei Miguel, a delicadeza do vibrafone de Mattias Ståhl, os gongs de David Maranha, a remeter para concerto no Museu da Cordoaria, as aproximações estetoscópicas do Grabriel Ferrandini na bateria, como que a dizer que em cada osso, falange ou metatarso da bateria há som, a ramificação do silêncio do contrabaixo do Hernâni Faustino ou as intermitências sonoras do saxofone de John Butcher.
Poderíamos continuar sentados ali no meio da plateia outras 3 horas, outras 10, outros 10 anos à espera de mais uma nota, de um acrescento ou subtracção, de um novo desenho na certeza que haverá sempre uma fuga a mecanismos auto impostos, aos catálogos do gosto. Se a vitalidade de um projecto ou cidade se manifesta é pela existência destes encontros, pela capacidade em dar espaço ao infinito, mesmo que nos digam que isso é impossibilidade. E que venham 10 elevado a 10: ao Red Trio e ao Maria Matos.
Fotografias (ensaios): Nuno Martins
Sem Comentários