Na intersecção de duas ruas, certamente. Vielas mal iluminadas, como corresponde. Nunca perguntar indicações. Não, isso nunca. Sem janelas tão amplas como o de Greenwich Avenue imortalizadas por Hopper. Numa noite de vento e chuva irlandesa onde entre cada pint sai verso à capela e With the notes in my ears, para citar o próprio Broderick. Só ele, ele mesmo, visita assídua, e ainda bem, ao nosso país e a Lisboa para convocar todas as cores da noite.
Só ele, ele mesmo capaz de abandonar o palco, esse estrado longínquo e inalcançável para, num gesto simples de bater palmas, cantando na profundeza da agora sua Irlanda, transformar o Teatro Tivoli, com apodo bancário, num verdadeiro pub irlandês. Entre a plateia e as escadas – As I Roved Out. Ouçam-no com o cotovelo encostado ao balcão, com o olhar fixo no empregado que cruza os braços ou o avô que vinca as dobras do bolso do casaco. Imagem clássica, provavelmente de como Ford ou Hitchcock dos primeiros anos a imaginariam: imutável. A força de uma voz, a voz como expressão de um carácter. Sim, clássico.
Se algum dia me perguntarem quando foi a única vez que fui a Dublin respondo, sem piscar de olhos e com a mesma convicção com que um miúdo grita pelo seu ídolo da bola: dia 24 de Maio de 2018. O mesmo dia em que estive com os pais do Peter e, junto a eles e à beira do piano com que o Peter tocou desde sempre, escutei o silêncio e também o Bob Dylan – I Threw it All Away.
Ouvir como o nunca tinha feito, na imensidão de Carlton (Oregon), nas colinas que se estendem entre o pacífico e os parques florestais. E, se na mesma data ouvirem dizer que assisti a uma das mais belas manifestações de amizade, eu confirmo. Peter Broderick entrega uma música ao seu grande amigo Casper Clausen – e ex-companheiro de The Group (Peter Broderick, Casper Clausen, Francesco Donadello, Martyn Heyne, Greg Haines). À guitarra, momento em que o loop toma vida, o que acontece é exactamente o não planeado: as imperfeições do momento, conjugadas para engradecer a dimensão humana.
Piano, guitarra, violino e pedais: o meio é irrelevante. Sem artifícios. Um ser desassombrado. Queremos continuar a cair dentro de nós. Queremos que a queda seja melodiosa e amparada. Continuamos a querer fixar o presente. A vontade do reencontro, da nobreza de um carácter. Peter Brodercik é a aproximação à essência. All Together Again (Erased Tapes Records), mais do que um projecto longo, idealizado em 2007 e editado em 2017, é a confirmação de um autor. A escrita como convocação de memórias. Memórias que se acrescentam, que se repescam, com a capacidade singular de resistir ao tempo. A ligação terrena.
Antes de tudo isto foram 21 horas. Uma hora suspensa. Nem final de jantar, nem início de noite. Primeira parte e oportunidade para descobrir o mais recente trabalho de Federico Albanese, By the Deep Sea. Radicado na Alemanha mas natural da Apúlia, esperaríamos encontrar a transparência do Adriático ou a languidez das noites de Verão em Lecce. Todavia, e salvo raros momentos em que a sobreposição das camadas correspondia a um alongar do tempo, todos os exercícios pareceram mais ou menos rendilhados prenhes de técnica, mas carentes de intensidade. Hora de espera. E nem sempre é fácil contornar a espera.
O ciclo Classic Waves, organizado pela Uguru, prossegue com Rui Massena e Peter Sandberg, a 28 de Junho, também no Teatro Tivoli BBVA.
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