Entre a afronta adolescente do Capuchinho Vermelho, o poder incendiário da sacerdotisa Melisandre de Asshai e a graciosidade de uma bailarina do Teatro Bolshoi. Assim foi a passagem de Florence Welch pelo NOS Alive onde, na companhia de uma máquina indestrutível e com sangue no lugar de óleo a correr-lhe nas juntas, assinou um concerto que ficará para a história do festival.
Florence + The Machine pode servir de assinatura mas, quando é hora do recreio, os brinquedos ficam todos na mão da catraia Florence, que os decidiu partilhar com muita generosidade com o público. Descalça, com um vestido vermelho que seria sensação na passadeira vermelha dos Nebula Awards, a artista inglesa fez deste concerto uma celebração para lá da música, uma profissão de fé onde até mesmo os não católicos não enjeitariam enfiar na boca uma hóstia consagrada.
Florence tem o poder de comunicação de uma Patti Smith, ajudando-nos a olhar para o mundo numa reflexão sobre aquilo que, aos poucos, nos vai tornando seres menos emocionais, sedentos de deixar para trás um lastro digital sob a forma de imagens e vídeos. Em “Dog Days Are Over”, um dos hinos maiores deste saudável culto, Florence pede para que sejam guardados os telemóveis, dizendo que passamos demasiado tempo a olhar para os ecrãs e que devemos tentar ser felizes no presente, aproveitando cada momento com quem está a nosso lado. Sem filtros, sem câmeras, sem registo.
Já mais à frente, com a celebração em ponto de rebuçado e às portas de “Rabbit Heart (Raise It Up)”, fala-nos de “sacrifícios humanos”, uma metáfora sobre a empatia e a humanidade que levou a que muitos colocassem pessoas às cavalitas, sobretudo os mais catraios e os pouco abençoados pela altura, num momento – mais um – emocionante.
Florence ia fazendo piscinas de um lado ao outro do palco, não deixando ninguém de fora, e desceu por várias vezes junto das grades, onde trocou cumprimentos, sorrisos e abraços. Em “Dream Girl Evil”, segurou o rosto de uma fã numa serenata íntima entre milhares, momento tocante que arrancou lágrimas mesmo aos mais durões.
Quase a fechar, após uma rendição de “Spectrum” onde os pulmões foram esticados ao limite, seguiu-se “Never Let Me Go”, canção deixada durante uma eternidade fora do alinhamento pelo facto de a recordar um tempo em que era “jovem, triste e bêbada”. Quem dela nunca desistiu foram os seus fãs, que lhe mostraram que tudo aquilo que deixamos para trás é parte de nós, e que nesta curta existência todos os momentos, mesmo os mais embaraçosos, tristes e angustiantes, fazem parte da equação. Se é de um culto que andam à procura, juntem-se a Florence + The Machine. Ámen.
Fotos: Arlindo Camacho
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