Na primeira edição do FOLIO – Festival Internacional de Literatura de Óbidos, o humorista Gregorio Duvivier – conhecido sobretudo pela sua brilhante prestação na Porta dos Fundos – mostrou o seu lado menos visível de poeta, arriscando, pela primeira vez, uma sessão de stand-up poetry onde o belo do humor foi servido em fatias generosas de versos e quadras. Ontem, a ZDB esgotou e acolheu o regressado Nerve, numa noite feita de beats, raiva, declamação e ironia, que resultou em algo tão inquietante e inesperado como um apurado momento de stand-rap poetry.
Nerve tem tudo aquilo a que nos habituámos a ver num rapper: o capuz que esconde e revela o rosto, um olhar que nos observa de um andaime, a raiva incendiária contra o sistema, um umbigo gigante, egocentrismo e megalomania para dar, vender ou levar de emprestado. Algo que parece surgir ainda mais maturado depois de um hiato de sete anos desde a edição de “Eu Não das Palavras Troco a Ordem (ENTPO)”, um dos discos de estreia mais recomendados do hip hop editados em Portugal. Um hiato em que o hip hop mudou e muito em Portugal, tanto nas várias ramificações que dele surgiram como, sobretudo, por se ter tornado presença habitual e regular em estações de rádio, programas televisivos ou em festivais de verão. Ao escutar Nerve, porém, é como se entrássemos no Delorean de Michael J. Fox e do professor lunático e regressássemos aos tempos de antigamente, das letras de guerrilha onde ecoam os gritos dos subúrbios, e nos perguntássemos: mas não será esta a essência do hip hop?
Apesar dos bilhetes terem escritos no verso “Não fumar no aquário”, as hostes aproveitaram as primeiras ondas da “Água do Bongo” para incendiarem cigarros e derivados, enquanto Nerve perguntava em relação ao novo disco ““Trabalho & Conhaque” ou “A Vida Não Presta & Ninguém Merece a Tua Confiança””: “Quem ouviu? Quem comprou?”. Muitos para a primeira e um pouco menos para a segunda questão.
A viagem fez-se sobretudo à volta do novo disco, muitas vezes entoado por uma sala que fez bem o trabalho de casa e que encontra, nas letras de Nerve, uma literatura que toca a muitos. É que, por muito que as coisas tenham mudado, o desencanto permanece instalado nas cidades e nos subúrbios – e no âmago de muito boa gente.
“Eu socializo…”, canta-se a certa altura no malhão “Monstro Social”, e não pode dizer-se que tenha faltado a socialização, ainda que a imagem de marca de Nerve seja o distanciamento com a realidade e a família – laboral, musical – que diz tê-lo acolhido. “É esse o espírito”, responde a alguém que atira para o ar um “Puxa boy”. Ou ainda quando devolve um “este gajo tem olho” a outro alguém que lança um “fácil é bom” a propósito da introdução a “Coincidências”, a música de reconciliação após o “final feio” de “Gainsbourg”.
Será Nerve um tipo “um bocadinho estragado, um bocadinho mimado”, como se ouve no magnífico “Nós e Laços”? A ser verdade o mimo – ou a falta deste – só lhe fica bem, pois mora aqui alguém que declama poesia: uma poesia citadina, carregada de negrume, que dispara em muitas direcções com amargura e raiva, mas também com orgulho e um ar de desafio. A Lenda está de volta (e a dar cartas como o Gambit).
Fotos gentilmente cedidas pela grande Vera Marmelo (conhecer mais do seu trabalho aqui: marmelo/cargo, monitor/tumblr, imarmelo/tumblr)
Próximos concertos na ZDB:
20 Janeiro
A Volúpia das Cinzas de Gabriel Ferrandini c/ Hernani Faustino e Pedro Sousa
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22 e 23 Janeiro
Sonic Scope Festival 2016 c/ Wednesday, David Maranha Ensemble, Vicente/Marjamaki, Ricardo Guerreiro e Emídio Buchinho, Landforms e Riccardo Dillon Wanke
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11 Fevereiro
Joe McPhee & Chris Corsano
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28 Fevereiro
Marching Church
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