Guerra Fria. A prática de um exercício que já caiu em desuso – ouvir rádio em directo. Criar uma atmosfera de encantamento e, como consequência, uma certa excitação. Percorrer o Facebook e ver que há quem fale de Mercury Rev, que o Mário Valente é o Dj antes e pós concerto, que há quem deseje ardentemente ouvir “Car Wash Hair” ou receber um telefonema de um amigo para descobrir que “The Dark is Rising” é a música que ouve quando atravessa a ponte para ir à praia.
“Guerra fria”, o mais recente filme de Pawel Pawlikowski que, segundo Pedro Mexia em conversa com a Inês Meneses no programa PBX, horas antes do concerto, é a estranheza de reconhecer uma profunda beleza no objecto cinematográfico, na tensão auto destrutiva de um amor levado ao limite – quem nunca – mas que, ainda assim, foi incapaz de se emocionar.
Guerra Fria. O piso de baixo do Lux. Sala que convoca memórias. As fugas às noites de Sábado, porque era certo estar o Dj Vibe, “ouvir” Matthew Dear, dançar descalço e partir de manhã para as praias do Oeste. Ir pelos concertos da Filho Único, Deerhunter (2009) ou, mais recentemente – talvez a última -, Yves Tumor no âmbito da BoCA Bienal. Sem a girafa ou sequer o urso polar, mas como uma referência. São 20 anos, afinal. É voltar a 1998. É 2018 e ouvir – nunca te esperava ver por aqui.
1998. Em 1998 lançam os Mercury Rev “Deserter’s Songs”, disco que serviu de mote para o recente concerto. 1998, o ano da ascensão da Brit Pop, como tão bem nos recordou Jonathan Donahue. 1998, ano em que é editado “The K&D Sessions”, por Kruder & Dorfmeister, com recente concerto no Lux. 1998 e a Expo-98, com Pangea de Nuno Rebelo. 1998, o abandono do Yahoo e o anelo no Google como o buraco do desconhecido. 1998 e a inauguração do Lux.
Tudo era possível: a música electrónica elegante do eixo Paris-Viena, Oasis, Primal Scream, Blur e um espaço muito especial para Mercury Rev. Nunca saberemos como entraram na nossa vida. Um disco comprado em Nova York depois do 11 de Setembro? Uma sugestão do António Sérgio? Cada um é desertor à sua medida. Cada um chega a Mercury Rev pelo seu pé. Cada um guarda a memória deles. E mexer na memória é fodido. É como ir a casa dos pais, recordar aquilo que queremos e, sobretudo, o que não queremos. 1998 é remexer num trapo velho. É ter experimentado a esperança sem nunca alguma vez a ter vestido.
2018 é guerra fria. Adeus esperança de 1998, adeus futuro. Atravessar o Terreiro do Paço e o campo de Futebol de 6. O Terminal de Cruzeiros frio como uma sala de espera de hospital, os cruzeiros e a vulgarização do condomínio privado. Mercury Rev é uma visão no deserto. É alucinação. Convoca-nos a canção, os tempos certos, as orquestrações, tudo afinado, seja as vozes de apoio, a flauta, os teclados. É o universo Disney, é uma melodia natalícia, é recordar Pavement num versão de “Here”, é contar estórias em torno dos Chemical Brothers e “Delta Sun Bottleneck Stomp”, é “Hudson Line”, “Goddess on a Highway” e “Holes”. É tudo isso e belas memórias. Bem mais novo, nunca elegante, mochileiro.
Chegar pelo teu pé até aqui. Foi bonito, mas o tempo é espelho cru. Guerra fria: reconhecer a beleza e não te apaixonares por ela.
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