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Memória de Peixe, III, Deus Me Livro, Crítica,
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Memória de Peixe | “III” (faixa a faixa)

Por Nuno Camões · Em 24/03/2025

A crença popular de que os peixinhos dourados têm apenas três segundos de memória não passa de um mito. Estudos demonstram que os peixes podem recordar vários meses, senão mesmo anos. Um pouco como acontece com os Memória de Peixe, a banda liderada pelo guitarrista Miguel Nicolau que continua a crescer e a evoluir.

O primeiro registo homónimo, lançado em 2012, apresentou o som instrumental da banda, marcado por loops de guitarra hipnóticos formando malhas, texturas e timbres diversos. O estilo remetia para o post-rock de bandas como os Tortoise e os Neu!, com incursões inesperadas por ritmos funk açucarados e outras extravagâncias.

Com o segundo trabalho, “Himiko Cloud” (2016), a banda libertou-se da limitação dos loops, aventurando-se numa espécie de jazz-rock electrizante, misturado com malhas de rock alternativo, música de videojogos e outros delírios da cultura pop. Na altura, Miguel Nicolau deixava uma espécie de lema, declarando que “o que o projecto Memória de Peixe traz é essa versatilidade estilística de não nos prender a nada”.

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Em 2025 a banda regressa com “III” (Omnichord Records), inaugurando uma nova fase e nova formação em power trio: Miguel Nicolau, na guitarra; Filipe Louro, no baixo; e Pedro Melo Alves, na bateria. Desta feita, Miguel Nicolau partiu da ideia de criar um disco em que a expressividade da guitarra fosse orgânica, mas o som fosse plástico (ou seja, que não parecesse uma guitarra). Usou para isso um pedal que multiplica as notas, transformando a guitarra num instrumento mutante e criando campos harmónicos e tonalidades diferentes dentro da mesma música, atingindo um efeito muito original.

Apesar desta abordagem, no essencial as referências mantêm-se: texturas de guitarra a fazer lembrar o trabalho de Marc Ribot; estruturas rítmicas hipnóticas e repetitivas da escola Philip Glass; contaminações de jazz com um travo a Pat Metheny – tudo mexido num caldeirão musical bem temperado. Embarquemos numa viagem faixa a faixa por “III”.

01 – Good Morning

O disco abre com uma frase de guitarra etérea que se repete em loop, emprestando tonalidades sucessivas a fazer lembrar o dramatismo dos Sigur Rós. Em fundo, o sintetizador e o baixo sublinham a melodia. A percussão, minimal, pontua discretamente o compasso. À volta da melodia surgem ecos cintilantes e, pouco a pouco, a canção vai ganhando ímpeto. O ambiente sonoro tem algo de dream pop, algo de Beach House com acrescentos de distorção. Ecoa uma voz misteriosa, como se pertencesse a um envelhecido cantor romântico. A música fecha-se depois sobre si, própria em direcção ao final.

02 – Peacemaker

A guitarra dedilhada e a percussão sincopada abrem caminho para um groove quente, espaçado e minimalista. Com uma batida jazzística e uma melodia minimal, esta faixa habita o mesmo universo da anterior, mas soa mais optimista e luminosa, lembrando os momentos mais solares dos Khruangbin.

03 – 3:13

Nesta faixa entramos em território mais experimental. O saxofone de José Soares assume o protagonismo, num tema cinemático com uma tensão de thriller político que se resolve num final suave. Com uma percussão inventiva e frases de guitarra dinâmicas, o som remete para o jazz de fusão de bandas como os Bad Bad Not Good.

04 – Under the Sea

Pequeno exercício sonoro com um padrão que se repete e multiplica. A voz convidada de Norberto Lobo surge inesperadamente, soando como um crooner de outros tempos. A percussão discreta, subterrânea, leva para o território do jazz. Estamos debaixo de água, num banco de corais, com uma fauna microscópica e colorida em volta, pequenos peixes, correntes e marés. Música em estado líquido.

05 – El Vuelo

Levantamos vôo nas asas de um som que se distende e encolhe. A guitarra repete frases em constante mutação, enquanto harmonias vocais flutuam num ambiente etéreo. Há uma espécie de substrato cósmico em todas as canções deste disco: todas remetem para as estrelas, para os mares, o líquido e o gasoso, o melancólico e o exultante. O compasso é inesperado e criativo, mantendo a tensão durante toda a faixa, até ao dramático sprint perto do final.

06 – Close Encounters

Espécie de interlúdio, dir-se-ia um jardim oriental — sons como sulcos num jardim zen. As vozes harmonizam-se, etéreas, prestes a desfazerem-se em vapor de água.

07 – Coincidentia

Com um ritmo marcado, esta faixa começa por fazer lembrar as construções sonoras assertivas dos The Smile. A percussão complexa comanda o desenrolar da música. Grande groove, em especial na segunda metade da canção.

08 – Not Tonight

Uma faixa atmosférica, experimental, um pouco imprevisível. Contaminado pelo saxofone, o tema corre como um r&b cósmico da safra de FKA Twigs. Um pouco assombrado, um pouco trap. O momento mais sensual do disco.

09 – The Sun Inside Your Eyes

Começa com um riff curioso roubado à guitarra. Textura rítmica diferente, sempre imprevisível, com padrões que mantêm a música constantemente à beira do desastre. Tem uma energia de improviso, experimental, muito dinâmica, com variações constantes que nos impelem para a frente até ao final. Verdadeira música de fusão entre rock, jazz, hip-hop e o que queiram acrescentar.

10 – Golden Fiasco

Música de embalar em ambiente tropical: um fim de tarde preguiçoso, numa qualquer praia de Honolulu. No rádio do bar toca uma cassete vintage de bossa nova, deixada ao sol e que se transformou noutra coisa qualquer. Ouvimo-la enquanto bebemos uma piña colada bem fresquinha.

11 – Good Night

A faixa que encerra o disco é mais uma surpresa — uma composição orquestral que leva o álbum para novos terrenos, encerrando-o numa nota de classicismo elegante de banda sonora. O tema confirma que a música dos Memória de Peixe abre, sem esforço, portais para diversos universos, reflexo de uma banda inventiva, caleidoscópica e em grande forma.

Conclusão

Com “III”, os Memória de Peixe continuam a expandir o seu universo musical peculiar, fundindo influências diversas: em grande parte, o jazz parece ter roubado o protagonismo ao rock alternativo dos discos anteriores, metamorfose que tornou a banda ainda mais interessante. Cheio de curvas e contracurvas, é um disco que merece ser ouvido e explorado com atenção. Recomendamos a audição com os auscultadores nos ouvidos e os sentidos bem apurados.

CríticaDeus Me LivroIIIMemória de Peixe

Nuno Camões

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