“Cara d`Anjo”, primeira rodela lançada com o nome com que assinou o BI ou o mais moderno Cartão de Cidadão, era já prenúncio de algo maior. Um disco que gravitava em torno do piano e da voz, com letras esculpidas com a habilidade e a paciência de um artífice, escondendo arranjos tímidos mas, ainda assim, ambiciosos.
Chegados a 2017, todas as esperanças depositadas e profecias lançadas sobre Luís Severo confirmam-se: o homónimo “Luís Severo” é um disco que entra directamente para a galeria das rodelas nacionais condenadas a fazer história, a serem passadas de geração em geração como testemunho de uma demanda pelo amor capaz de fazer nascer flores na alma, na pele e no coração.
São oito canções, todas elas com Lisboa ao fundo, onde se fala essencialmente do Amor mas, também, de uma cidade que sufoca ou da escola como um motivo de insónias ou pesadelos. Uma autobiografia alfacinha que, apesar de ser profundamente solitária, esconde lá dentro uma orquestra bem composta, num disco cheio e luminoso.
“Amor e Verdade” é uma abertura das grandes, onde o canto surge como a derradeira esperança de uma cidade que chora por os filhos a venderem como uma boneca remendada. Um ajuste de contas com o passado, de alguém que já foi moço mas que, com muito tédio e alguma fé, se transformou em homem; em “Planície (Tudo Igual)”, um piano dá o arranque para o baile popular/urbano, com a bola de espelhos a girar tanto que depressa se entra em hora de ponta. Há um toque africano, um cheirinho a canção de intervenção e, se escutarem com atenção, um eco a chanson française com a rotação marada; em “Escola”, os sopros conduzem a um território de insónias e pesadelos, abrindo a porta para a desconfiança; “Meu Amor” é um abaixo-assinado a exigir o regresso do slow às pistas de dança, onde piano e flauta possam dançar abraçados numa tremedeira constante. Canta-se a descoberta do amor e do outro e suspira-se por carinhos que dêem flores; “Cabeça de Vento” é pop com travo orquestral, um momento indie em ponto de rebuçado onde a descoberta da vida adulta está resumida num verso singular: “A festa aborrece e lembra o que na vida já não interessa”; imaginem uma jam session onde, na mesma sala, se sentam os Real Estate e os Broa de Mel, e terão uma ideia aproximada do que acontece em “Boa Companhia” – que pode ser já eleito o tema do ano. Há guitarras solarengas e coros popularuchos, num baile que queremos que dure para sempre; “Lamento” pega em “Sing”, tema que os Blur compuseram em 1996 para “Trainspotting”, para falar de lamentos, ciúmes e amores que foram e já não voltam, de alguém perdido num loop de amores mal vividos; em “Olho de Lince” o fantasma vivo dos Capitão Fausto caminha a passo, numa canção que traz de volta o primeiro amor, o deslumbramento pela cidade e a separação que deixa a cabeça e o corpo à toa. Ainda assim, há esperança para o amor e a reabilitação dos sentidos. Afinal, quem tem um olho de lince é rei.
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