Há quem, durante toda a sua vida – ou boa parte dela -, se dedique a coleccionar selos, amigos imaginários ou globos de neve. J.R.R. Tolkien foi mais inquieto e, ao longo da sua vida terrena, inventou uma série de idiomas – como o quenya e o sindari, falados pelos elfos, ou o khuzdul, usado pelos anões -, que lhe serviram de trampolim literário para a criação de algumas das mais importantes obras de literatura fantástica universal, como a trilogia de O Senhor dos Anéis, O Hobbit ou, ainda, O Silmarillion.
Formados em 1981, os Dead Can Dance nunca assentaram pé nos trilhos literários, mas a verdade é que até partilham algumas coisas com mestre Tolkien, como a construção de paisagens de cortar o fôlego ou o uso de mantras e línguas de mundos distantes. Tão distantes que, por vezes, chegam a parecer inventados. Algo que foi perceptível durante a longa carreira dos Dead Can Dance, e que ganha ainda mais relevância em “Burn”, disco que resulta de uma parceria entre Lisa Gerrard – membro fundador dos Dead Can Dance – e Jules Maxwell – colaborador dos Dead Can Dance em algumas digressões desde 2012 -, e que foi apresentado ao vivo pela primeira vez na noite de ontem no CCB no âmbito do Misty Fest.
Um disco que, apesar de ter sido lançado em 2021, começou a ser marinado na tour de 2012 dos Dead Can Dance, quando Maxwell compôs com Lisa “Rising Of The Moon”, tema que acabou por ser tocado no encore de cada concerto da digressão e lançou as sementes de uma parceria futura. Mais tarde (2015), quando Maxwell recebeu a encomenda de compor canções para o coro búlgaro The Mystery of the Bulgarian Voices, convidou Lisa Gerrard para a festa e, juntos, compuseram quatro canções que viriam a fazer parte de “BooCheeMish”. Já em 2021, com a produção de James Chapman – com o nome artísitico Maps -, Jules Maxwell e Lisa Gerrard lançaram “Burn”, disco onde cada uma das sete canções começa devagar, culminando numa experiência encantatória algures entre a hipnose e o saltar da fogueira, num convite a uma construção cinéfila por parte de quem as escuta. Para acompanhar o disco, foi gravado um vídeo para cada canção, vídeos projectados durante o concerto e que foram de um sentimental preto e branco a uma explosão de cor digna da mais atrevida pintura moderna, que parecem olhar para os atribulados tempos do mundo.
Num jogo de luz bem desenhado, Jules Maxwell dividiu-se entre o piano de cauda e o lado electrónico, disparando todos os sons pré-gravados e os vídeos que iam servindo como papel de cenário mutável e em constante movimento. Já Lisa Gerrard, sempre num estilo muito discreto, ofereceu-nos o seu melhor perfil, numa performance com um lado muito operático onde as palavras foram substituídas, no final, por um abanar de leque, muitos sorrisos e o ar de quem ia para casa satisfeita da vida. As palavras, aliás, são aqui um desafio, parecendo ter um lado considerável de improviso, de construção instantânea de mantras que poderão mudar de concerto para concerto, numa reinvenção constante dessa língua quase inventada que está muito perto daquilo a que chamamos poesia.
A abrir a noite, Jules Maxwell tocou na íntegra “Cycles”, onde cada tema foi, também, acompanhado de um pequeno vídeo, com espaço para caracóis a circular em câmara lenta, uma visão do trânsito em modo Memento, uma poça de água turva que convidava a imaginar rostos fantasmagóricos ou uma folha que mais parecia uma edição especial de uma varinha do Harry Potter. Ainda houve tempo para um tema com a fadista portuguesa Lina, com quem Maxwell está a trabalhar numa nova colecção de canções. Mais um belo concerto para guardar no álbum de recortes do Misty Fest.
MISTY FEST 2023 | DATAS
EDU LOBO E MÔNICA SALMASO
22 Novembro | CCB, Lisboa
LISA GERRARD & JULES MAXWELL
23 Novembro | Casa da Música, Porto
25 Novembro | Teatro Municipal – Guarda
27 Novembro | Centro de Artes e Espectáculos – Figueira da Foz
29 Novembro | Theatro Circo, Braga
30 Novembro | Centro de Artes do Espectáculo – Portalegre
ROGER ENO
23 Novembro | Museu do Oriente – Lisboa
24 Novembro | Auditório de Espinho – Academia
JOANA SERRAT
27 Novembro | Museu do Oriente – Lisboa
28 Novembro | Casa da Música, Porto
TIGRAN HAMASYAN
5 Dezembro | Casa da Música, Porto
6 Dezembro | CCB, Lisboa
Promotora: Uguru
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