No palco, ao final da tarde, no mesmo plano que a Joana Gama. O jardim da Gulbenkian na imponência que lhe confere a altura daquele vidro e na indolência do lago, dos arbustos e das árvores de grande porte, para a apresentação de Música Callada, do compositor catalão Federico Mompou. No palco, à noite, nas mesmas cadeiras, agora de frente para os músicos e para uma enorme plateia vazia. O piano e a Joana Gama, na companhia de Luís Fernandes e da Orquestra Metropolitana de Lisboa, na apresentação de “at the still point of the turning world“, que encerraria o ciclo Música no Feminino – que contou com Rokia Traoré, Mahsa e Marjan Vahdat e Aldina Duarte, entre outras.
A deslocação da plateia e a possibilidade de distintas apropriações. O mesmo espaço: reconfigurá-lo e, com isso, obrigar o espectador a uma leitura inusual. A cadência lenta do piano, as teclas que se tocam e se entrecruzam com o silêncio, medido na suspensão da respiração de cada um de nós. A frugalidade de Música Callada, um exercício introspectivo. Uma forma de estar. O exímio controlo dos detalhes. Tudo o que se toca tem uma razão de ser, existe na construção de um todo, nunca por si e jamais como um adorno. Afastamo-nos, olhando o jardim. O porte das árvores, o dia que desaparece. Quanto mais longe vamos e penetramos mais nos aproximamos do universo da Joana e do compositor catalão. Um caminho que se faz na partilha de um eu. Como se, por momentos, aquelas notas nos fossem familiares. A sala da Inês, nas MagaSessions, a Rua Direita de Viseu e a interpretação de “Vexations“, de Erik Satie, ou ainda os 4’33” de Cage (Festival Rescaldo – 2018). Há, no trabalho da Joana – ou, pelo menos, no que nos é dado ver nas últimas apresentações -, uma vontade intrínseca em testar novos limites. Limites espaciais, arriscamo-nos a dizer. Trabalha-os permanentemente. Uma busca obsessiva na reconfiguração de novos termos, originando, como tal, novas espacialidades. Nunca para ela. Nós com ela, para um eu. Seja através de uma ambiente próximo e mais familiar, como no concerto da Gulbenkian, seja o testar a resistência física (a interpretação de Vexations é de 14 horas, aproximadamente) ou num espaço infinitamente amplo e constrangedor que é o silêncio (Cage – 4’33”).
Ângulos novos, interposições, rupturas. Um mecanismo espacial que se testa na relação entre diferentes linguagens, a erudita com a electrónica, como foi o caso do segundo concerto – “at the still point of the turning world”. Nunca é nada de novo, aparentemente. Colaborações entre músicos vinculados a linguagens eruditas com electrónica sempre existiram. E o mesmo,com a Joana – Joana Gama + Ricardo Jacinto + Luís Fernandes (Harmonies) e Joana Gama + Luís Fernandes (Quest). As relações entre ambas as linguagens raramente se estabelecem por sobreposições: há-as, mas é nos encaixes, nos pontos de contacto entre o piano, os sintetizadores e os instrumentos clássicos (sopros, cordas e precursão), que se consegue cerzir o tal ponto de equilíbrio num universo em rotação. Um lugar para todos na extensa linha da simplicidade, da frugalidade. Como que o universo de Mompou tivesse saltado as coordenadas do tempo e abraçasse este projecto de hoje segundo o mesmo princípio – o da subtileza.
Dois exercícios que correspondem a um processo de pesquisa extremamente meritório. As novas reconfigurações que a Joana tem vindo a testar, seja a solo, seja em colaboração com outros músicos ou artistas de outras áreas, permite-nos antever novas reconfigurações e, com elas, um posicionamento diferente de cada um de nós. E, assim, a vontade de descoberta.
Fotos: Jorge Carmona (cedidas gentilmente pela Fundação Calouste Gulbenkian)
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