Uma Sexta-feira. Uma noite como tantas outras. Cais do Sodré, 02h30, paragem do autocarro. Um grupo de 10-12 rapazes e raparigas. Falam, divertem-se, pequenas picardias antes de estenderem a noite em qualquer pista de dança das docas ou Alcântara. Uma noite banal, uma noite como outras tantas. A polícia bem protegida, musculada, aparece sem pré-aviso. Um por um contra a parede, de braços esticados e pernas afastadas. Maniatados, espoliados. O autocarro chega, nós partimos; eles ficam. Nós os brancos, eles os negros. Há racismo. A subir em direcção ao Príncipe Real. À direita, as escadinhas do Duque e o castelo. Um passeio como todos os outros. No largo da Misericórdia, a estátua do Padre António Vieira. Inaugurada por Fernando Medina, Santana Lopes e pelo cardeal D. Manuel Clemente. Iconografia urbana a representar uma visão da história. Iconografia urbana a perpetuar essa visão da história. Não por acaso “guardada”, seja lá o significado de tal acção, por militantes da extrema-direita. Há racismo, perpetuado em bronze. Um cidadão, um cidadão. Isso, a plenitude do ser – cidadania. Um cidadão caminha tranquilamente por Picoas. É abordado e filmado em tom agressivo. Argumentos populistas, não fundamentados. Argumentos é termo valioso. Uma enxurrada de impropérios retrógrados, visões bafientas da sociedade e o outro como inimigo. Nunca tu, sempre ele. Os dois prepotentes são militantes do PNR, o cidadão é Mamadou Ba. Há racismo. Um dia como todos os outros nas redes sociais. Racismo difundido em directo. Atrás, bem lá atrás. As aulas de história. Portugal no vértice superior. Brasil, a grande descoberta. Angola e as outras colónias. Relações entre Angola e o Brasil? Inexistentes. Vinte e cinco anos mais e aparece-nos Ruy Duarte de Carvalho – Desmedida, crónicas do Brasil. A história é outra. Angola alimenta o Brasil – de escravos. Aos escravos dá-se-lhe pretensa carta de alforria, se estes ajudarem o exército português na luta contra os holandeses. Há racismo. O racismo não ensinado na escola.
Há racismo nos Estados Unidos. Camae Ayewa, ou Moor Mother, como também é conhecida, sabe-o bem. De quando criança até hoje, episódios de racismo na pele e de luta contra ela não lhe deverão faltar. Moor Mother activista, envolvida em diferentes projectos na sua Filadélfia natal. Moor Mother, que já tinha visitado a ZDB em 2017, a solo, apresentou-se desta vez acompanhada pelos Irreversible Entanglements – ou seja – Moor Mother (voz), Tcheser Holmdes (bateria), Aquiles Navarro (trompete), Keir Neuringer (saxofone) e Luke Stewart (contrabaixo). Quinteto jazz onde a voz de Camae confere uma amplitude extra e que remete, naturalmente, para o campo do Spoken word. Amplitude e métrica. Sincopadas as palavras, a marcar um ritmo, uma vontade de esperança. Tem de haver liberdade. Há liberdade, nem que seja no céu. Pelos que vêm, pelos que morreram antes de nós lutando por ela. As palavras existem. Existem para ser ditas, para serem atiradas. Para abalar. Elas são a matriz dos minutos que passam. Elas são a força que empurram vontades mais fortes. “Are you afraid?”. Não temos e seguimos noite dentro. Ora agarrados à voz, ora seguindo o contrabaixo, o trompete ou a bateria, sempre constante. É assim na primeira parte. Será assim na segunda. Há denúncia, há narrativa e construção. Há argumento alicerçado numa execução técnica irrepreensível e numa voz que transmite determinação, ardor. Referências a Art Ensemble of Chicago e a Sun Ra são inevitáveis e assumidas pelos próprios. Poderíamos juntar Gil-Scott Heron, Public Enemy, Ursula Rucker e Last Poets, só para citar os mais óbvios. Ainda e sempre na memória o concerto de Matana Roberts (Out Fest 2015) e de Nídia (Out Fest 2018). Um património comum respeitado, tornado herança e que todos vão perpetuando e transmitindo.
Há racismo. Sabemo-lo. É visível. Sabemos nós e quem no concerto. Estamos conscientes disso. Sabemos nós, sabemos todos. E daí? Que fizemos? Que faremos? Olhas em volta – um único negro na plateia. Sintoma de uma realidade. Nada mais, uma realidade. Que fizemos para apoiar os cidadãos vítimas da violência policial na esquadra da PSP de Alfragide? Já contribuímos para pagar as custas judiciais? Quantas vezes entrámos em bairros como o Jamaica? Quem conhecemos que viva lá? Que partilhe connosco um acto tão simples como tomar café? Não nos faz confusão que todas as mulheres que limpam o Pingo-Doce sejam de raça negra? E que fizemos? Estamos conscientes. Mas há racismo. O desconforto é inevitável. A interrogação é acto saudável. Mas suficiente? Por isso algo curto. Faltou o silêncio que nos desconsolasse. Ao mesmo tempo o grito – Ergue-te. Um petardo em forma de sax demoníaco. Um gesto que fosse. Um rastilho para a acção, mais do que consciencialização.
O autocarro que parte, nós com ele. Amanhã outro concerto. Yo La Tengo? Eles ficam. Nós os brancos, eles os negros. Há racismo, por omissão de acção.
Fotos: Vera Marmelo/ZDB
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