Espreitando pelo retrovisor, vamos a tempo de apontar a mira a um disco singular, editado no ano passado. Falamos de “Aconteceu” (Planalto Records, 2020), álbum instrumental que assinalou o regresso do guitarrista Grutera depois de cinco anos sem gravar. Este mais recente trabalho é uma espécie de relato desses anos, dez memórias em forma de canções.
Ataca-se o disco com “A Partir Daqui”: em fundo o mar, seguido de notas soltas, singulares, a ecoar no espaço amplo do silêncio. No centro do palco está a guitarra clássica, e o sentimento dominante é uma certa energia tranquila. Não tarda muito estamos a pairar no interior da guitarra, flutuando em gravidade zero, notas dedilhadas em redor. Ou então ondulamos no fundo do mar da Nazaré, onde nasceu Guilherme Efe, o cidadão que se esconde por detrás do alter-ego Grutera.
Também em “Para Mim És Assim” a toada é calma, distendida, ganhando aos poucos ritmo e dinâmica. Em alguns pontos a guitarra é primaveril, como em “Fica Entre Nós”, balada melódica e solar que prenuncia dias de céu azul e marés calmas.
“Aconteceu” é então um disco com vista para o mar, feito para espaços abertos – veja-se “Perto é Sempre Melhor”, título em contra-corrente com o nosso quotidiano cauteloso e distanciado. Já “Lume” evoca um certo desassossego – com uma só guitarra, Guilherme convoca um batalhão de notas, tecendo um manto sonoro que lembra o minimalismo de Philip Glass.
É um processo de catarse, é uma necessidade, é uma forma de comunicar” – é assim que Guilherme define o seu som. O músico consegue arrancar das cordas um vocabulário rico, às vezes abstracto, como em “Vestígios”, onde mora um zum-zum atmosférico e disforme. Noutros pontos a linguagem é ritmada e emocional – é assim em “Ultramar nas Mãos”, no qual a repetição de frases musicais se torna, ao fim de algum tempo, hipnótica.
Não há palavras neste disco, e no entanto pouco fica por dizer no discurso de Grutera, dono de uma guitarra com vista para o seu apaixonante mundo interior, que vislumbramos como quem se debruça sobre um poço fundo.
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