As luzes tremem e, no ecrã que serve de papel cenário, passam fotografias e imagens a preto e branco de recortes arrancados a jornais, com títulos como “Os três mosquiteiros” ou “GNR é do caraças”. Não é caso para menos. A banda portuguesa, que traz o Porto no coração, celebra 35 anos de carreira no Campo Pequeno e, antes mesmo de subir ao palco, tem já direito a um aplauso colectivo que roça a boa histeria adolescente.
Nestas três décadas e meia muitas foram as bandas que despontaram, triunfaram e se eclipsaram neste Portugal, mas nenhuma delas conseguiu chegar perto dos GNR que, futebolisticamente falando, jogaram sempre na Liga dos Campeões. Em todas as rodelas que lançaram há, pelo menos, um par de canções que espreitam a eternidade, e não será preciso qualquer Resistência para que estas façam parte do mais entusiasmante cancioneiro português.
E que melhor tema para começar uma noite feita de greatest hits do que “Bem-Vindo ao Passado”, retirado de um sumptuoso disco chamado “Popless”? Ao longo de duas horas de concerto, o trio maravilha mantém a mesma química de sempre, com Tóli César Machado a servir de maestro e músico para todo o serviço, Jorge Romão a assumir o papel de animador e Rui Reininho, ainda que menos conversador do que é habitual, a destilar estilo e a tornar ainda mais cómicas e surreais as letras que são já o nosso ABC. Como quando, em “Triste Titan” e depois de cantar “Se a maré te dá um xoxo“, remata com um certeiro e muito colocado “nada melhor que a trivela dos ciganos“.
Em “Video Maria”, enquanto uma rapariga sedutora e pouco católica passa a cores no ecrã, Reininho bebe de uma caneca – provavelmente água-benta -, isto antes de um final com um toque de Daft Punk. “Efectivamente” é responsável pelo primeiro levantar da plateia, que celebra a música como se de um golo se tratasse. “Efectivamente, aqui é diferente“, canta Reininho fazendo lembrar um longínquo “Nesta Lisboa que eu amo” quando no Coliseu se brincava aos recreios.
“O que é que eu hei-de dizer? Fomos mais ou menos felizes. Convosco.” A frase é dita por Rui Reininho pouco antes de os GNR se entregarem a uma versão mais suja e rocker de “Caixa negra”, o tema-título de um disco sem espinhas. Continuamos a viajar no presente com “Cadeira Eléctrica”, canção que se ouve como uma súmula da mística GNR: um tema atravessado por alguma tristeza e melancolia, embrulhado no mais puro sarcasmo, humor e uma roupagem musical galvanizante. “Ana Lee” faz de novo levantar a plateia, ela que entrou num disco onde cada tiro foi um single com direito a air play e a letras (mais ou menos) decoradas por meio país.
Rita não trouxe os seus Red Shoes mas entrou em palco envergando um muito estiloso vestido preto, falando-nos desses “Homens Temporiamente Sós”: sempre abatidos, com o engano escrito no ADN mas, como bolas de ténis no ar, avessos ao casamento. Já ao lado de Reininho cantou toda a tristeza do mundo em “Dançar Sós”, o tema mais melancólico dos GNR que nos recorda que, no fim da linha, seremos sempre nós, à conversa com os nossos botões numa dança sem par.
Entramos depois em modo Afectivamente, um território mais propenso aos afectos e aos arranjos orquestrais. “Asas” propõe um diálogo entre o piano e as teclas electrónicas, com Reininho numa interpretação capaz de fazer levantar voo uma praça sem touros. “Bellevue”, com o surgimento de um violino endiabrado e um constante pára-arranca musical, revela-se um dos grande momentos da noite. “Valsa dos Detectives” é tocada em modo carrossel, acelerando tanto que só por milagre não salta dos eixos num final apoteótico. A fechar este modo afectivo escutase um triunfante e tocante “Sete naves”, com Reininho nas castanholas comandando o regresso ao magistral “Os Homens Não Se Querem Bonitos”.
Estávamos a meio do jogo, mas a verdade é que a segunda parte trouxe goleada: Javier Andreu entrou em campo para uma grande versão de “Sangue oculto”, o tema que fez os GNR crescerem uns bons centímetros; “Las Vagas” faz descer a bola de espelhos, no momento mais disco da noite; em Macabro, que foi alvo de um peeling bem-sucedido, Reininho está já em camisa (feita à mão?), enquanto Jorge Romão lidera um afinado coro; a menina Isabel Silvestre canta-nos “Santa Combinha”, levando-nos às montanhas e ao Portugal das tradições. Não podia faltar “Pronúncia do Norte”, esse hino de uma região que se veio a tornar, também, o hino cantado por um país inteiro – e, desta vez, Silvestre não tremeu como quando viu um mar de gente em Alvalade. “Nova Gente” traz finalmente o acordeão para cima do palco, anunciando a chegada do comboio a “Coimbra B”. Em “Morte ao Sol” já há quem vá seriamente pensando em fazer desta noite uma directa, que acabe nas “Dunas” ao sabor de maçãs e de corpos salgados. Mas quando o “Telefone Pecca” abre-se um verdadeiro “Inferno”, e há-que chamar de novo Javier Andreu para cantar este clássico do cancioneiro do país irmão. Ainda há tempo para se ver jogar a selecção dos “Sub-16”, para se gritar a plenos pulmões – com a ajuda do Coro de Santo Amaro de Oeiras – que com esta vida de adulto “Mais Vale Nunca” mais crescer. “Sejam felizes. Como eu sou“, aconselha Reininho aos mais pequenos. Certamente que o serão, se fizerem das letras – e da música – dos GNR o seu alfabeto.
O grande final fica reservado para o dia 11 de Fevereiro, num lar doce lar chamado Porto. Os 35 são os novos 18.
Galeria fotográfica (fotos de Luísa Velez)