Quando Gisela João entrou, quase de rompante, no muito conservador mundo do fado, foi como ver uma miúda que veste Bershka a tentar sobreviver ao primeiro dia num colégio privado com tiques de Maçonaria. Num universo que tem o negro e a descrição quase máxima como leis não escritas, quem era aquela miúda que gostava de usar vestidos, de cantar descalça e que mostrava, com orgulho, as suas tatuagens?
Pois bem, essa miúda acaba de lançar “AuRora”, o seu terceiro longa-duração que, mais do que operar a tão anunciada revolução – um pouco como aconteceu com Rosalía e o Flamenco -, mostra uma devoção tremenda ao fado e às suas tradições, lembrando como este pode curar as mais profundas mágoas ou, num dia bom, ser tão sedutor quanto Don Juan ou Casanova.
“Quanto eu cantava/Já não chorava/Bato nas tábuas do palco”. Palavras de abertura que descobrimos em Tábuas do Palco I, uma canção a três tempos que abre, divide e encerra o disco e que, neste arranque, cruza o fado mais clássico com a subtileza da electrónica, anunciando que este é um disco de fado com assinatura e muito, mesmo muito sentimento.
Em Já não choro por ti até a guitarra chora de forma diferente, com um certo sotaque espanhol antes de uma ida a Coimbra com o embalo da chanson française. Qualquer coisa como As tábuas do meu caixão revisited, onde se canta a superação de uma relação.
Canção ao coração é uma canção de embalar e de conforto a um coração em cacos, onde se revela que “Quando um coração que se perde não se encontrar/Basta dizer ao sol e à lua/Que vai cantar/Que vai viver/Que vai sonhar”.
Em Louca começamos e terminamos em modo Nils Frahm, ouvindo o ranger e as articulações doridas de um piano. Uma radiografia sobre o fim, plena de auto-afirmação, onde há noites mal dormidas, bocas doridas, a negação da loucura e a rejeição do modo simplista do tudo ou nada.
Uma linha de baixo prepara a entrada de um corridinho em Longe Daqui, onde se canta sobre um amor atravessado e apartado por um rio: “Mas triste será quem não sofre/O amor, a prisão sem grades/No meu coração há um cofre/Com jóias que são saudades”. As relações à distância têm destas coisas.
O diálogo entre a guitarra e as teclas está no centro de Vai, tema onde se sente esta forma de cantar e sentir o fado tão própria de Gisela João.
Tábuas do Palco II leva o fado ao interior de uma igreja, numa canção habitada por um piano espectral onde se recusa o salto alto. Há mesmo alguns bips à solta, que para alguns poderá recordar o som de um jogo spectrum segundos antes da felicidade de um carregamento bem-sucedido.
A tempestade faz-se ouvir em Não fico para dormir, onde vemos um amor partir entre as gotas da chuva. “Eu fui feita para partir/Sou a chuva que evapora”, canta Gisela, enquanto as guitarras dedilham as cordas para um fado que pede chuva.
António Marinheiro poderia bem ser a banda sonora escolhida para uma aventura em alto-mar, onde a tempestade e a bonança vão mandando mensagens para trocarem de turnos.
Um céu abre-se em dois em “Budapeste”, num fado que também é jazz e onde há soluços calados e a invenção de uma língua nova capaz de reanimar um coração.
Saia da Herança é um fado sem guitarras, o tema mais alternativo deste “AuRora”, onde ouvimos o som do mundo que pulsa e uma história familiar sobre uma herança singular talhada à medida: “São panos de quem eu sou”.
A fechar temos Tábuas do Palco III, o último momento do tríptico fundador de “AuRora”, que termina com os dois acordes que, ao longo da história, têm servido para encerrar de forma empolgante tudo o que é fado.
Como escreve Gonçalo M. Tavares, que assina o prefácio a este disco de sentimentos onde Gisela João se estreia como letrista, compositora e produtora – em parceria com Michael League e Nic Hard – , “Gisela João coloca na tristeza uma pressão do tom com que recebe cada letra”. Uma tristeza que, mais do que convidar ao alheamento e à desistência, é quase sempre uma forma de alcançar a superação, deixando para trás o abandono, o desamor ou o excesso de melancolia. Cinco tábuas – ou estrelas, se preferirem.
Sem Comentários