“Foreverland”, o mais recente longa-duração dos The Divine Comedy, mostra-nos uma banda em boa forma e um homem feliz com a vida. A meio de dois concertos esgotadíssimos em Portugal, estivemos à conversa com Neil Hannon, o homem da Renascença. Falou-se do Brexit, da patetice como uma coisa boa e da falta tremenda que as mulheres fazem aos homens.
Seis anos depois de “Bang goes the Knighthood”, os Divine Comedy regressam com a história de Catarina, a Grande, discutindo o Complexo de Napoleão e fazendo referências a Diderot e a Voltaire. A orquestração está de volta e o palco está montado. Podemos dizer que “Foreverland” é uma espécie de vintage Divine Comedy?
Sim, pode ser, não me importo que o ponhas dessa forma. Nunca pretendi realmente fazer coisas que soassem como Divine Comedy, ou que não soassem como Divine Comedy. Simplesmente faço música e as coisas aconteceram dessa forma. Para ser sincero acho que neste disco há tanta orquestração como no anterior “Bang goes the Knighthood”, mas talvez o sentimento geral deste novo disco seja um pouco mais orquestral. É difícil de dizer, porque “Catherine the Great” ou “How can you leave”, por exemplo, são temas Pop onde há muitas e estranhas coisas a acontecer.
“Bang goes the Knighthood” era, muitas vezes, sarcástico e amargo, enquanto “Foreverland” é prazeirento e divertido. O que mudou nestes seis anos que levaram a um disco centrado no amor e nas relações pessoais?
Adivinha.
Amor?
(Risos) Sim, tratou-se de encontrar a pessoa certa. Mas falar disso é embaraçoso, vou corar.
Por que razão levou tanto tempo a ser editado?
Suponho que parte disso deveu-se a ter ficado mais velho e ao facto de mais pessoas conhecerem o meu trabalho, o que me levou a fazer mais coisas para lá dos The Divine Comedy. Mas também ao facto de ter crianças (risos), à vida, a mudar de casa – isso provoca uma grande confusão. Compus também uma ópera para a Royal Opera House, fiz uma peça para o Royal Festival Hall, outro álbum de cricket com o meu amigo Thomas, o que levou muito tempo. Não faço estas coisas para evitar fazer discos de The Divine Comedy, adoro os meus próprios discos, mas é muito difícil dizer que não a propostas tão boas.
Tiveste saudades dos arranjos na tua aventura a solo? E como foi ter de entreter uma multidão sozinho?
Certamente é preciso mais fibra, acabava as noites muito mais exausto. Não pela energia gasta, mas pela concentração necessária para manter toda a gente do meu lado o tempo inteiro. Mas gostei mesmo, mesmo muito desses espectáculos a solo, onde podia criar uma ligação imediata com a audiência. Mas prefiro tocar com a banda, faz um barulho tão agradável.
Também ajuda teres uma veia de stand up comediant.
Penso que sei o que dizer entre canções. É algo que faço há já vinte e cinco anos. Mas não sou eu o mais engraçado no nosso autocarro (risos), e no entanto sou capaz de dizer piadas em palco de que as pessoas se riem. Os outros rapazes não o conseguem, e isso faz-me sentir bastante bem (risos). Mas nunca poderia ser um comediante, não tenho material para tanto.
Em “How Can You Leave Me On My Own’ pareces escrever sobre os problemas que afectam os homens, como queixarem-se que bebem demasiado chá, comem imensas bolachas, não conseguem lidar com as coisas verdes que a dieta exige e, sobretudo, não conseguem deixar de olhar para miúdas nuas. Somos todos uns papalvos sem a condução das mulheres?
Bem, os homens heterossexuais são-no. Penso que todos os seres humanos são essencialmente tolos, todos temos as nossas falhas. Mas entre os meus amigos é claramente óbvio que isso acontece. Não se nota enquanto és novo, quando és apenas tu e não tens de inventar desculpas. No meu caso não desperdicei o tempo em relações quando andava nos vintes, mas há algo que acontece quando estabeleces uma relação de longa data. Esta exige muita concentração para que as pessoas funcionem como conjunto, e quando a outra pessoa parte estás perdido, e apenas vais conseguir descer (aqui Neil Hannon faz o barulho e o gesto de uma avioneta a despenhar-se). Sim, acho que acabei por dizer tudo isto nesta canção.
O que havia de tão especial com a Catarina, que por acaso não se chamava Catarina nem sequer era russa?
Eu sei, era prussiana, não era? Não foi de todo um elogio pensado, ela acabou por chegar no momento certo à canção. Mas temos de lhe conceder crédito por ter sido uma monarca no século XVIII europeu, o que não era fácil. Não era um fantoche nas mãos de outros, mas uma governante de punho firme. Não particularmente uma governante muito agradável de se ter, mas nessa altura era assim. É uma canção sobre essa Catarina, a Grande, que disfarça aquilo que eu queria dizer sobre a minha Catherine.
“If”, “The Perfect Lovesong” e agora “To The Rescue”, a canção pop romântica mais incrível de 2016. É como os Beatles uma vez o cantaram, “All you need is love”?
Mmm, muito obrigado. Não sei, sim, é uma boa canção (risos). Começou no meu Prophet 5 Synth, devias ouvi-lo, é doentio, frequências estranhas a voarem de toda a parte. E com um ritmo totalmente diferente. Escrevi uma canção inteira, uma letra inteira, intitulada “Reconnecting”, que era razoável mas nunca chegou a ser uma boa canção. Mas gostava muito da sequência de acordes, e assim deitei o resto fora e comecei de novo, e essa base lançou a nova versão. Penso que é uma lição importante para os escritores de canções: se há algo numa canção de que gostas, e mesmo que não seja a canção perfeita, não a deites no lixo. Podes sempre extrair aquele bocado de que gostas e compor, a partir dele, algo novo.
Os Divine Comedy deram-nos sempre uma visão literária da vida, e não apenas por causa de uma canção chamada “The Booklovers”. O que tens andado a ler ultimamente?
Bem, muitos livros sobre História (risos). Gosto especialmente de Tom Holland, é um fantástico escritor que consegue dar vida ao passado. O que mais tenho estado a ler? Biografias de Ravel, e também Alex Ross, que escreveu um livro chamado “The rest is noise”, sobre a história musical – e particularmente sobre a música clássica – do século XX. Dele estou também a ler o livro novo chamado “Listen to this”. São apenas fotografias de vários compositores e daquilo que fizeram. À medida que vou ficando mais velho é-me cada vez mais difícil ler ficção, penso que se deve provavelmente a uma existência que parece ter congelado no espírito das segundas-feiras (risos). Li também “Parade`s End”, de Ford Madox Ford, um livro volumoso e absolutamente fantástico. Mas é o problema da meia-idade, de ter filhos e essas coisas. Começas a ler quando entras na cama e dás por ti a ressonar para dentro do livro (risos). Acho que cada um deveria tirar duas semanas longe da vida apenas para ler. Parece um sonho. É o que vou fazer quando a tour acabar.
Eras um assumido oponente ao Brexit, dizendo a certa altura que mesmo quando o Império se foi os Ingleses continuaram a pensar que eram melhores do que todos os outros.
Disse realmente isso? (risos) Olha que tenho muitos ingleses na minha banda.
Irá a Inglaterra sobreviver a isto e evitar também o vírus Trump que se vai instalando um pouco por toda a parte?
Sim…sociedade contemporânea. Não é uma conversa muito agradável de se ter. A Grã-Bretanha, ou a Inglaterra, irá sobreviver, realmente tudo sobrevive, é apenas uma questão de ver com que nova forma ficará. É impressionante assistir à História a ser escrita. Estávamos nos anos 1990 a pensar que já estaria tudo basicamente resolvido, que íamos estacionar em democracias liberais capitalistas, governadas por líderes aborrecidos (risos), mas não. De alguma forma, é como se as pessoas se aborrecessem quando está tudo bem (risos). Obviamente não ajudou que o sistema financeiro fizesse o que fez, arruinando as economias ocidentais e criando uma grande massa de pessoas realmente zangadas, que não sabiam como expressar essa zanga – talvez porque não as educámos devidamente. Isto está de facto uma grande barafunda. Apenas estou triste pelos 49% de pessoas que não queriam que a Inglaterra abandonasse a Europa, porque essas são todas as pessoas que conheço. Não conheço ninguém que desejasse isto. Mas é como se diz em Inglaterra: sabemos qual é o lado do pão que tem manteiga (risos).
Tens conseguido balançar de forma superior a patetice com a sinceridade, a melancolia com o optimismo. Como raio o consegues?
Estou contente por teres reparado na patetice, porque muitas vezes as pessoas do teu meio (os jornalistas) querem que eu seja um pouco mais sério, o que é hilariante. Mas a única forma que tenho de chegar às partes sérias é permitir-me ser inteiramente a pessoa que sou e que isto seja reflectido na música. Por isso não posso mostrar o retrato completo se não desarrumar as coisas. Não penso que a vida seja 100% séria, triste e negativa. Na verdade, a maior parte dos meus dias tendem a ser divertidos. Muitos dos meus escritores ou realizadores preferidos, como Alan Bennett ou Woody Allen, chegam aos assuntos sérios através do humor, e eu gosto disso.
Sim, é algo que conseguimos ver nas tuas letras, onde numa canção sobre o amor profundo há alguém que dá restos por baixo da mesa a um cão esfomeado. Uma mistura de amor com humor, que é a própria vida.
Sim, isso que disseste. É verdade (risos).
O Deus Me Livro agradece à Everything Is New e à Pias Iberia & Latim America pela entrevista.
Sem Comentários