“Canções Mortas” (2014, Gentle Records) aterrou em algumas listas de melhores álbuns de 2015 – e com mérito -, apesar de ter sido editado em Dezembro de 2014. O segundo álbum de João Sarnadas, também conhecido como o Coelho Radioactivo, tem o selo da Gentle Records, editora online com base no Porto que também edita o outro projecto do Coelho com o seu amigo Luís Severo, os Flamingos.
Vamos por partes: o Coelho Radioactivo é um puto, ainda não tem 25 anos. No entanto, as suas composições revelam um autor maduro, vestido de mágoa. “Ela é um mal que eu não desejo a ninguém, só a mim”, canta em “De vez”. Percebe-se que o combustível criativo do álbum é feito disto: amores tóxicos, desilusões, tristezas, olhos que são “tesouras que me cortam no sono”.
O disco prossegue na mesma linha do anterior “Estendal”, de 2012, com algumas diferenças. Havia, nesse primeiro trabalho, uma certa dispersão, que tanto podia passar pela guitarra pós-punk de “Perséfone” como pela percussão manhosa à Tom Waits em ”O Velho”.
“Canções Mortas” é mais focado. A sonoridade assenta numa aspereza lo-fi, que nos remete para artífices como Nick Cave, Nick Drake e Mark Hollis, influências assumidas pelo Coelho. “Sou grande ladrão, roubei-lhes essa merda toda”, declarou numa entrevista ao jornal Público. “Roubo que me farto, mas eles também roubaram a outros, por isso não há problema.”
No decorrer do disco deparamo-nos com pianos de saloon poeirentos (“Pistola”), solenes órgãos de igreja (“Cavalo”) e dedilhados de guitarra límpidos e cristalinos, com cordas que parecem feitas de vidro (“Uma Nova Jerusalém II”). A guitarra forma a ossatura do som, a meias com o piano, ambos com uma clareza trepidante.
A voz, de recorte quase religioso, desenha frases invulgares e imagens curiosas. “Dá-me um beijo”, pede em “Braços”, e o pedido parece uma súplica destinada a não ser atendida. A forma de cantar é inabitual, e assinala uma personalidade artística vincada e um carácter singular.
As músicas de “Canções Mortas” são delicadas, dão a sensação de poderem desmoronar-se a qualquer momento. São faixas cheias de silêncios pacientes, respirações e objectos estranhos. O ambiente é atmosférico e misterioso. Ao mesmo tempo há carne e sangue nas letras. Veja-se “Deito”: miolos espalhados e crânios abertos, acompanhados por uma guitarra de western spaghetti, musculada e cinemática, que parece saída de uma banda sonora de Morricone.
A faixa “Já vai embora” fecha o disco e toca o mesmo, neste caso no bom sentido. A guitarra fala connosco, revelando quase tanto como a voz. “É só mais uma nuvem, já vai embora”, acaba num tom esperançoso.
Uma máquina de fazer melancolia, este disco pede paisagens amplas, ideal para a aridez do deserto, real ou figurado. Disco tão delicado como violento, “Canções Mortas” é um agradável paradoxo.
“Canções Mortas” não tem edição física. Pode ser adquirido em suporte digital através de coelhoradioactivo.bandcamp.com.
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