A noite prometia chuva. Ainda assim, havia uma sala cheia na Galeria Zé dos Bois (ZDB) para ver a rapper Capicua, naquele que se anunciava como um concerto diferente, mais ligado ao lado esquerdo: o lado do coração.
Rapper militante desde 2004 e oriunda da escola hip-hop das mixtapes e do graffiti do Porto, começou a dar nas vistas em 2012 com o álbum homónimo, editado pela Optimus Discos. Foi, no entanto, em 2014, ano da edição de “Sereia Louca”, que Capicua saltou definitivamente do circuito hip-hop underground para a arena pop, com uma música que entrou no ouvido de toda a gente chamada “Vayorken”.
O concerto começa com “Lenga” e “Sereia Louca”. Em palco, Capicua e M7, a MC que a acompanha desde o início, animam as hostes. Lá atrás, na casa das máquinas, controlando os samples e as pesadas batidas, estão D-One e Virtus. O público, rendido ainda antes do primeiro acorde, recebe efusivamente a cantora. Muito descontraída, Capicua apresenta “A Mulher do Cacilheiro”, dedicado a todas as mulheres trabalhadoras que arcam com o peso antigo de uma cultura patriarcal.
A música de Capicua guerreia em várias frentes: feminista obstinada, povoa o seu rap com inúmeras figuras de mulheres fortes. A rapper é uma escritora de corte fino e tem muito a dizer. As melodias são orelhudas, as letras têm um subtexto social atento e militante – é uma artista subversiva no melhor sentido do termo.
Segue-se “Alfazema”, interpretada à capela, sem instrumentação, o que ampliou ainda mais o seu impacto. A letra fala da insegurança e da “fúria do espelho” mas, em palco, esteve uma intérprete sempre muito segura e confiante.
Saltou-se de seguida para “Medusa”, tema-título do álbum de remisturas de 2015, com o público a levantar os braços em sinal de amor. Para “O Soldadinho”, Capicua contou com a colaboração da convidada especial Tamin, que agarrou o público no enlaço da sua voz doce e afinada.
Capicua confidencia que ainda está a habituar-se a este registo mais intimista, mas promete um final mais agitado – na plateia, alguém lhe pede para “soltar a a franga”. Ainda não estava na hora. Segue o espectáculo com “Amigos imaginários”, “Luas” e “Casa no Campo” – esta última, segundo a própria, contém as quatro rimas que melhor a definem:
“Quero uma horta do outro lado da porta e quero a sorte
de estar pronta quando a morte me colher,
Quero uma porta do outro lado da morte,
Ter porte de mulher forte quando a vida me escolher”.
Prosseguimos com “Fumo denso”, colaboração com DJ Ride, que apresenta um som mais electrónico e texturado (tem um fantástico videoclip, muito cinemático). Depois mais uma versão à capela, desta vez de “Vinho Velho”, com a voz de Capicua acompanhada apenas pela sombra irrequieta da rapper nas paredes negras do aquário da ZDB.
Depois de “Lupa” – colaboração com a cantora angolana Aline Frazão -, e antes de se atirar a uma poderosa versão de “A Liberdade”, de Sérgio Godinho – que electrizou por completo a plateia -, Capicua relembra a situação dos presos políticos em Angola, encarcerados apenas por discutirem um livro. “É preciso conquistar a liberdade todos os dias”. Chega então a hora de soltar a franga (ou do “avacalhanço”, como lhe chamou M7). “Pedras da Calçada”, “Maria Capaz” e “Egotríptico” foram verdadeiras maratonas eufóricas – esta última com uma prestação impiedosa e ácida de M7 –, a profusamente tatuada MC não deixou pedra sobre pedra.
Na recta final, Capicua atira-se a “Jugular”, de novo à capela, e depois a “Medo do Medo”, grande tema do álbum “Capicua”, de 2012. Encerra-se a festa com a inevitável “Vayorken”, a plateia a corresponder, em êxtase, ao convite de Capicua para dançar com “a melhor coreografia, aquela que fazem sozinhos, em casa, só de pijama”.
Depois de algumas rimas comovidas, dedicadas a uma amiga da ZDB infelizmente desaparecida, o espectáculo termina – mas irá, certamente, persistir na memória e no coração de quem teve a sorte de lá ter estado.
Foto de destaque: Miguel Refresco/Curva Contra Curva.
Próximos concertos na ZDB (sempre às 22h00):
12 Maio: Rahu
19 Maio: Geneva Jacuzzi + Jejuno
26 Maio: Tomorrow Tulips + Mighty Sands
29 Maio: White Fence
31 Maio: Steve Gunn Band
16 Junho: DAWN (Dawn Richard)
19 Junho: Kikagaku Moyo
24 Junho: Minta & The Brook Trout
23 Julho: Goth Money Records
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